quarta-feira, 28 de maio de 2025

'O capital' volta às livrarias e prova que o espectro de Marx ainda nos ronda; entenda

Ruan de Sousa Gabriel / O Globo

'Um clássico que não cessa de provocar, de estimular', diz José Paulo Netto, biógrafo

São Paulo - Em 20 de outubro de 2008, no início da maior crise financeira desde a Grande Depressão, o jornal londrino The Times, insuspeito de esquerdismo, noticiou um espectro que se supunha exorcizado desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, voltava a rondar o mundo: Karl Marx. “O Capital”, dizia a reportagem, “que na última década vinha sendo usado principalmente como peso de porta”, fora reabilitado por leitores que buscavam entender a raiz da crise. Quase duas décadas depois, os efeitos da debacle econômica ainda não passaram — e nem o interesse nas ideias do velho Marx. Tanto é que uma tradução do “Capital” produzida na Guerra Fria acaba de retornar às estantes do país.

No dia 5 de maio (aniversário de Marx), a editora Ubu relançou a célebre tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, publicada em 1983 na coleção “Os economistas”, da Abril Cultural. Totalmente revisada, a nova edição inclui as modificações de Marx na tradução francesa, de 1875, até agora inéditas no Brasil. Ele incorporou observações críticas ao texto, acrescentou material histórico e estatístico, reposicionou parágrafos e capítulos inteiros, indicando que sua reflexão estava longe de encerrada. O primeiro volume do “Capital” foi publicado em 1867. O segundo e o terceiro foram editados por Friedrich Engels em 1885 e 1894, após a morte de seu parceiro intelectual.

Para José Paulo Netto, autor de “Karl Marx: uma biografia” (Boitempo) “O Capital” é, por excelência, “uma obra inconclusa”:

— “O capital” permanecerá inacabado enquanto seu objeto de análise, o modo de produção capitalista, não se esgotar historicamente. É isso que define um clássico, ele não cessar de provocar, de estimular — insiste o professor emérito da UFRJ.

E “O capital” é um clássico que não interessa apenas a quem sonha com a superação do capitalismo, diz Fernando Rugitsky, professor de economia da Universidade do Oeste da Inglaterra. Até o austríaco Joseph Schumpeter, crítico da intervenção estatal na economia, foi um grande leitor e intérprete do Marx.

— “O capital” contém tensões internas e ambiguidades que convidam a múltiplas leituras. É uma obra que buscou desvendar a dinâmica de uma sociedade que se organiza em torno da troca de mercadorias e que ganha atualidade à medida que a mercantilização avança sobre diferentes esferas da vida — afirma Rugitsky, que escreveu um texto introdutório à nova edição.

Fundadora da Boitempo, Ivana Jinkings relata que a procura pela “Coleção Marx-Engels” cresceu na pandemia. Ao todo, os 36 volumes da coleção já bateram quase meio milhão de cópias vendidas (incluindo e-books). Em dezembro, a editora publicou “O essencial de Marx e Engels”, seleção do “best of” da dupla (“Manifesto comunista”, “Teses sobre Feuerbach”, feita pelo sociólogo italiano Marcello Musto. Ainda este ano, a editora publica o primeiro volume de “Teorias do mais-valor”, obra considerada uma espécie de continuação do “Capital”.

— A Boitempo nasceu há 30 anos com a ideia de publicar clássicos nunca lançados no Brasil ou fora de catálogo. A tradução do “Manifesto comunista”, em 1998, deu início a uma mudança de rota. Notamos a enorme carência da obra de Marx e Engels nas livrarias. Hoje celebramos o crescente interesse nessa obra por parte do público e das editoras — afirma Jinkings. — Para nós, publicar Marx e Engels é também um projeto social e político.

De fato, nem sempre houve tanta fatura de marxismo nas livrarias. Nascido em 1947, em Juiz de Fora, José Paulo Netto recorda-se das antologias da editora Vitória, ligada ao Partido Comunista, que traziam traduções de segunda mão de textos de Marx e Engels. Quem se dispunha a desbravar “O capital” e não sabia alemão recorria a traduções francesas ou à do Fondo de Cultura Económica do México, assinada por Wenceslao Roces, intelectual exilado da Guerra Civil Espanhola.

A primeira tradução nacional do “Capital”, de Reginaldo Sant’Anna, foi publicada entre 1968 e 1974. Em 1983, saiu a de Flávio R. Kothe e Regis Barbosa, coordenada e revisada por Paul Singer, que fixou o vocabulário marxista brasileiro. De 2013 a 2017, a Boitempo lançou a tradução de Rubens Enderle, que inovou ao substituir “mais-valia” por “mais-valor”, expressão mais próxima do alemão “Mehrwert”.

— Mais-valia, na verdade, vem da tradução francesa “plus-value”. Discutimos se devíamos mudar para “mais-valor” e o Singer argumento que mais-valia já era um conceito estabelecido. Eu achava que devia ser “valor a mais”, uma solução mais próxima da lógica do português. — diz Kothe, que é professor aposentado de estética da UnB.

A tradução agora recuperada pela Ubu se beneficiou das discussões travadas nos míticos seminários do “Capital” organizados a partir de 1958 por jovens intelectuais da USP, como José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz e Paul Singer. Em “Lugar periférico, ideias modernas”, o sociólogo Fabio Mascaro Querido analisa o impacto da recepção paulista da obra de Marx no pensamento crítico brasileiro.

Os seminários na USP, diz Querido, são um exemplo do que Max Weber, um dos pais da sociologia, chamou de “paradoxo das consequências”. Embora o grupo tenha optado por uma leitura “científica” do “Capital”, que não estivesse explicitamente comprometida com a intervenção no presente (como faziam intelectuais ligados ao Partido Comunista ou ao nacional-desenvolvimentismo), jovens sociólogos como FHC e Octavio Ianni incorporaram o marxismo às suas pesquisas sobre a sociedade brasileira.

— Assim surgiu o que Roberto Schwarz chamou de “nova intuição do Brasil”, uma interpretação influenciada pelo marxismo que marcou profundamente a vida intelectual e, a partir dos anos 1980, a política do país. — afirma o professor da Unicamp, lembrando que esses debates influenciaram até mesmo a criação dos dois partidos que dominaram a política nacional após a redemocratização, o PT e o PSDB.

Na mesma época em que o Brasil encerrava a ditadura, o comunismo cambaleava na Europa e o marxismo caía em descrédito. Após um momento de “perplexidade”, diz José Paulo Netto, a esquerda apostou “na revitalização de textos clássicos de Marx e Engels” e discussões sobre a cultura. Intelectuais feministas, como Silvia Federici Nancy Fraser, também chamaram o alemão para conversar (e o criticaram por desconsiderar a importância do trabalho doméstico), lembra Fernando Rugitsky. E a crise de 2008 trouxesse o “Capital” de volta à discussão econômica.

— Qualquer crítica à ordem social vigente tem que começar pela crítica da economia política, e ninguém fez isso melhor que Marx. Sem ele, não é possível pensar soluções efetivas às questões contemporâneas. Do contrário, nosso papo pode até ser radical, mas a prática não será — provoca Netto.

Rugitsky recomenda a leitura do “Capital” tanto a quem se esforça para entender decisões supostamente erráticas de Donald Trump quanto a jovens angustiados com a crise climática e que não veem perspectivas de futuro.

— A obsessão de Marx foi mostrar que as sociedades humanas são sempre produtos históricos. Por maiores que sejam os desafios do presente, é bom lembrar que nosso modelo de sociedade, que foi criado num certo período, se transformou de diferentes maneiras (muito bem descritas no “Capital”, aliás) e dificilmente durará para sempre. Seu destino está em aberto.

Karl Marx em seu tempo

1818: Nasce em Trier, na atual Alemanha.

1842: Conhece Friedrich Engels na redação da Gazeta Renana, jornal de Colônia para o qual escrevia.

1843: Casa-se com Jenny von Westphalen e redige sua “Crítica da filosofia do Direito de Hegel”.

1848: Em parceria com Engels, publica “O manifesto comunista”.

1849: Expulso da Alemanha e da França, muda-se com a família para Londres. A ajuda de Engels alivia suas dificuldades financeiras.

1867: Publica o primeiro volume do “Capital”.

1883: Morre, em Londres, deixando incompleto o projeto do “Capital”. O segundo e o terceiro volumes são editados por Engels em 1885 e 1894.

Serviço:

‘O capital’

Autor: Karl Marx. Tradução: Flávio R. Kothe e Regis Barbosa. Editora: Ubu. Páginas: 2.384. Preço: R$ 459.

‘O essencial de Marx e Engels’

Organização: Marcello Musto. Tradução: Nélio Schneider e outros. Editora: Boitempo. Páginas: 1.008. Preço: R$ 293.

‘Lugar periférico, ideias modernas’

Autor: Fabio Mascaro Querido. Editora: Boitempo. Páginas: 288. Preço: R$ 65.

 

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