Ruan de Sousa Gabriel / O Globo
'Um clássico que não cessa de provocar, de
estimular', diz José Paulo Netto, biógrafo
São Paulo - Em 20 de outubro de 2008,
no início da maior crise financeira desde a Grande Depressão, o jornal londrino
The Times, insuspeito de esquerdismo, noticiou um espectro que se supunha
exorcizado desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, voltava a rondar o mundo: Karl
Marx. “O Capital”, dizia a reportagem, “que na última década vinha sendo
usado principalmente como peso de porta”, fora reabilitado por leitores que
buscavam entender a raiz da crise. Quase duas décadas depois, os efeitos da
debacle econômica ainda não passaram — e nem o interesse nas ideias do velho
Marx. Tanto é que uma tradução do “Capital” produzida na Guerra Fria acaba de
retornar às estantes do país.
No dia 5 de maio (aniversário de Marx), a editora Ubu relançou a célebre tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, publicada em 1983 na coleção “Os economistas”, da Abril Cultural. Totalmente revisada, a nova edição inclui as modificações de Marx na tradução francesa, de 1875, até agora inéditas no Brasil. Ele incorporou observações críticas ao texto, acrescentou material histórico e estatístico, reposicionou parágrafos e capítulos inteiros, indicando que sua reflexão estava longe de encerrada. O primeiro volume do “Capital” foi publicado em 1867. O segundo e o terceiro foram editados por Friedrich Engels em 1885 e 1894, após a morte de seu parceiro intelectual.
Para José
Paulo Netto, autor de “Karl Marx: uma biografia” (Boitempo) “O Capital” é,
por excelência, “uma obra inconclusa”:
— “O capital” permanecerá inacabado enquanto
seu objeto de análise, o modo de produção capitalista, não se esgotar
historicamente. É isso que define um clássico, ele não cessar de provocar, de
estimular — insiste o professor emérito da UFRJ.
E “O capital” é um clássico que não interessa
apenas a quem sonha com a superação do capitalismo, diz Fernando Rugitsky,
professor de economia da Universidade do Oeste da Inglaterra. Até o austríaco
Joseph Schumpeter, crítico da intervenção estatal na economia, foi um grande
leitor e intérprete do Marx.
— “O capital” contém tensões internas e
ambiguidades que convidam a múltiplas leituras. É uma obra que buscou desvendar
a dinâmica de uma sociedade que se organiza em torno da troca de mercadorias e
que ganha atualidade à medida que a mercantilização avança sobre diferentes
esferas da vida — afirma Rugitsky, que escreveu um texto introdutório à nova
edição.
Fundadora da Boitempo, Ivana Jinkings relata
que a procura pela “Coleção Marx-Engels” cresceu na pandemia. Ao todo, os 36
volumes da coleção já bateram quase meio milhão de cópias vendidas (incluindo
e-books). Em dezembro, a editora publicou “O essencial de Marx e Engels”,
seleção do “best of” da dupla (“Manifesto comunista”, “Teses sobre Feuerbach”,
feita pelo sociólogo italiano Marcello Musto. Ainda este ano, a editora publica
o primeiro volume de “Teorias do mais-valor”, obra considerada uma espécie de continuação
do “Capital”.
— A Boitempo nasceu há 30 anos com a ideia de
publicar clássicos nunca lançados no Brasil ou fora de catálogo. A tradução do
“Manifesto comunista”, em 1998, deu início a uma mudança de rota. Notamos a
enorme carência da obra de Marx e Engels nas livrarias. Hoje celebramos o
crescente interesse nessa obra por parte do público e das editoras — afirma
Jinkings. — Para nós, publicar Marx e Engels é também um projeto social e
político.
De fato, nem sempre houve tanta fatura de
marxismo nas livrarias. Nascido em 1947, em Juiz de Fora, José Paulo Netto
recorda-se das antologias da editora Vitória, ligada ao Partido Comunista, que
traziam traduções de segunda mão de textos de Marx e Engels. Quem se dispunha a
desbravar “O capital” e não sabia alemão recorria a traduções francesas ou à do
Fondo de Cultura Económica do México, assinada por Wenceslao Roces, intelectual
exilado da Guerra Civil Espanhola.
A primeira tradução nacional do “Capital”, de
Reginaldo Sant’Anna, foi publicada entre 1968 e 1974. Em 1983, saiu a de Flávio
R. Kothe e Regis Barbosa, coordenada e revisada por Paul Singer, que fixou o
vocabulário marxista brasileiro. De 2013 a 2017, a Boitempo lançou a tradução
de Rubens Enderle, que inovou ao substituir “mais-valia” por “mais-valor”,
expressão mais próxima do alemão “Mehrwert”.
— Mais-valia, na verdade, vem da tradução
francesa “plus-value”. Discutimos se devíamos mudar para “mais-valor” e o
Singer argumento que mais-valia já era um conceito estabelecido. Eu achava que
devia ser “valor a mais”, uma solução mais próxima da lógica do português. —
diz Kothe, que é professor aposentado de estética da UnB.
A tradução agora recuperada pela Ubu se
beneficiou das discussões travadas nos míticos seminários do “Capital”
organizados a partir de 1958 por jovens intelectuais da USP, como José
Arthur Giannotti, Roberto Schwarz e Paul Singer. Em “Lugar periférico,
ideias modernas”, o sociólogo Fabio Mascaro Querido analisa o impacto da
recepção paulista da obra de Marx no pensamento crítico brasileiro.
Os seminários na USP, diz Querido, são um
exemplo do que Max Weber, um dos pais da sociologia, chamou de “paradoxo das
consequências”. Embora o grupo tenha optado por uma leitura “científica” do
“Capital”, que não estivesse explicitamente comprometida com a intervenção no
presente (como faziam intelectuais ligados ao Partido Comunista ou ao
nacional-desenvolvimentismo), jovens sociólogos como FHC e Octavio Ianni
incorporaram o marxismo às suas pesquisas sobre a sociedade brasileira.
— Assim surgiu o que Roberto Schwarz chamou
de “nova intuição do Brasil”, uma interpretação influenciada pelo marxismo que
marcou profundamente a vida intelectual e, a partir dos anos 1980, a política
do país. — afirma o professor da Unicamp, lembrando que esses debates
influenciaram até mesmo a criação dos dois partidos que dominaram a política
nacional após a redemocratização, o PT e
o PSDB.
Na mesma época em que o Brasil encerrava a
ditadura, o comunismo cambaleava na Europa e o marxismo caía em descrédito.
Após um momento de “perplexidade”, diz José Paulo Netto, a esquerda apostou “na
revitalização de textos clássicos de Marx e Engels” e discussões sobre a
cultura. Intelectuais feministas, como Silvia
Federici e Nancy
Fraser, também chamaram o alemão para conversar (e o criticaram por
desconsiderar a importância do trabalho doméstico), lembra Fernando Rugitsky. E
a crise de 2008 trouxesse o “Capital” de volta à discussão econômica.
— Qualquer crítica à ordem social vigente tem
que começar pela crítica da economia política, e ninguém fez isso melhor que
Marx. Sem ele, não é possível pensar soluções efetivas às questões
contemporâneas. Do contrário, nosso papo pode até ser radical, mas a prática
não será — provoca Netto.
Rugitsky recomenda a leitura do “Capital”
tanto a quem se esforça para entender decisões supostamente erráticas de Donald Trump quanto
a jovens angustiados com a crise climática e que não veem perspectivas de
futuro.
— A obsessão de Marx foi mostrar que as
sociedades humanas são sempre produtos históricos. Por maiores que sejam os
desafios do presente, é bom lembrar que nosso modelo de sociedade, que foi
criado num certo período, se transformou de diferentes maneiras (muito bem
descritas no “Capital”, aliás) e dificilmente durará para sempre. Seu destino
está em aberto.
Karl Marx em seu tempo
1818: Nasce em Trier, na atual Alemanha.
1842: Conhece Friedrich Engels na
redação da Gazeta Renana, jornal de Colônia para o qual escrevia.
1843: Casa-se com Jenny von Westphalen e
redige sua “Crítica da filosofia do Direito de Hegel”.
1848: Em parceria com Engels, publica “O
manifesto comunista”.
1849: Expulso da Alemanha e da França,
muda-se com a família para Londres. A ajuda de Engels alivia suas dificuldades
financeiras.
1867: Publica o primeiro volume do
“Capital”.
1883: Morre, em Londres, deixando
incompleto o projeto do “Capital”. O segundo e o terceiro volumes são editados
por Engels em 1885 e 1894.
Serviço:
‘O capital’
Autor: Karl Marx. Tradução: Flávio
R. Kothe e Regis Barbosa. Editora: Ubu. Páginas: 2.384. Preço: R$
459.
‘O essencial de Marx e Engels’
Organização: Marcello Musto. Tradução: Nélio
Schneider e outros. Editora: Boitempo. Páginas: 1.008. Preço: R$
293.
‘Lugar periférico, ideias modernas’
Autor: Fabio Mascaro Querido. Editora: Boitempo. Páginas: 288. Preço: R$
65.
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