Valor Econômico
Uma reforma geral do orçamento parece
inevitável e o federalismo fiscal está em plena transformação
O orçamento público é o principal instrumento de política econômica de um país. Nele, estabelecem-se incentivos para poupar, consumir, investir, trabalhar e produzir, influenciando diretamente a acumulação e a utilização dos fatores de produção. No processo orçamentário, em que a classe política discute as prioridades do país, estabelecem-se as bases institucionais que fortalecem a democracia e promovem o crescimento econômico.
O governo encaminhou o Projeto de Lei de
Diretrizes Orçamentárias de 2026 com duas informações que merecem atenção. A
primeira, publicada no Anexo IV.2 de metas fiscais anuais, mostra que o novo
arcabouço fiscal combinado com as atuais regras orçamentárias inviabilizará o
pagamento das despesas discricionárias que devem se tornar negativas a partir
de 2027. As regras fiscais deverão ser rediscutidas e uma nova estratégia de
ajuste será desenvolvida.
A segunda informação, publicada no Anexo
IV.8, é a evolução do patrimônio líquido (PL) do governo federal, principal
indicador de solvência de qualquer agente econômico. O PL incorpora todos os
ativos e passivos do governo e apresenta uma informação mais completa do que a
dívida pública. Um item importante dos passivos é o resultado atuarial da
previdência dos servidores e nos ativos encontra-se o valor da participação
governamental em empresas e o ativo imobilizado. Ambos não são registrados nas
estatísticas de dívida.
Diferentemente do setor privado, o PL
governamental pode ser negativo sem que o governo se torne insolvente. De fato,
o PL é negativo em todos os países do G7. O governo pode elevar a tributação e
possui monopólio sobre a emissão da moeda o que o torna um agente distinto dos
demais. Mesmo assim, o PL importa: alguns estudos indicam que os custos de
emissão de dívida são influenciados pelo PL nos países desenvolvidos1. Um
estudo do FMI avalia que a gestão do PL possui impactos positivos no controle
fiscal a longo prazo com melhor combinação de investimento e crescimento2.
A evolução do PL do governo federal desde
2014 impressiona. Naquele ano, o governo federal registrou PL positivo de R$
118 bilhões, equivalente a 2% do PIB. Em 2024, o PL atingiu um valor negativo
de R$ 5,9 trilhões, o que equivale -50,3% do PIB. Existem dois momentos de
piora significativa: em 2015 quando o PL se tornou negativo em R$ 1,4 trilhões
(-23,8% do PIB) e na pandemia quando atingiu -R$ 4,4 trilhões (-58,4% do PIB, o
pior indicador da série).
Várias revisões metodológicas impactaram
profundamente a estimativa do PL no período. Isso evidentemente, cria sérios
empecilhos para uso imediato como âncora fiscal. Mas o comportamento mais
estável do indicador nos últimos anos indica que a qualidade da informação
melhorou bastante e que os dados são mais confiáveis para uma avaliação de
solvência governamental.
A dívida cresce a uma velocidade superior aos
ativos e o tamanho do passivo previdenciário deveria preocupar bastante os
gestores públicos. A judicialização tem afetado bastante as contas
governamentais e deveria ser um foco de atuação para melhorar as políticas
públicas.
Os créditos tributários são um ativo
importante e uma boa gestão pode melhorar a situação patrimonial do governo.
Atualmente, a expectativa de recuperação dos créditos tributários gira em torno
de 16%. São bem-vindas, portanto, as várias iniciativas tomadas nessa área
desde a reforma tributária até os instrumentos de renegociação. Mas a piora
fiscal vem acompanhada de desinvestimentos importantes.
Apesar de, atualmente, não ser aconselhável
seu uso como âncora fiscal, a abordagem patrimonial como referência de gestão
fiscal e a contabilidade por competência podem corrigir uma série de distorções
presentes na política fiscal brasileira. Há viés em favor de despesas correntes
contra despesas de capital. Mas quando o governo se endivida para investir, ele
acumula um ativo e mantém o PL constante. Quando se endivida para custear
despesas correntes, o PL cai e o país fica mais “pobre”. Tais decisões são diferentes
da perspectiva da saúde financeira de um país.
Dívida cresce a uma velocidade superior aos
ativos e o tamanho do passivo previdenciário deveria preocupar
Uma política pública nova deveria informar
sobre seu custo no presente e no futuro. A abordagem de caixa utilizada
atualmente não permite essa avaliação. Existem vários exemplos em que decisões
são tomadas considerando apenas o espaço fiscal disponível no presente sem
considerar o comprometimento do orçamento nos próximos períodos, possibilitando
gastos ineficientes e subfinanciamento de políticas importantes.
O governo atua com vários fundos que são
entidades separadas relacionadas entre si. O uso de múltiplos fundos torna o
impacto da política fiscal bastante difícil de ser acompanhado, o que hoje é um
problema. Em uma abordagem patrimonial essas operações são incorporadas ao
resultado governamental e aumentam a transparência das ações do governo, que
tem condições de avaliar de forma precisa o impacto de suas políticas.
O foco no patrimônio líquido amplia a
importância de uma boa gestão dos ativos. Administrar bem os ativos significa
criar valor e ampliar a riqueza governamental. Para administrar os ativos reais
de maneira apropriada é importante conhecê-los primeiro. Vários países publicam
relatórios tempestivos com técnicas modernas de avaliação de seus ativos. Se
não há conhecimento adequado sobre os ativos, provavelmente serão mal
administrados.
Uma gestão profissional que gere valor em
ativos reais comerciais pode ampliar a riqueza e abrir espaço fiscal para
financiar as políticas públicas e elevar os resultados fiscais, além de trazer
efeitos econômicos positivos por meio de ampliação da concorrência e maior
eficiência econômica. Esses instrumentos são conhecidos como Public Wealth
Funds e existem experiências bem-sucedidas tais como o Temasek de Singapura e o
Solidium na Finlândia. Vários países da OCDE têm aprimorado a gestão de ativos
públicos.
A emergência de novas temáticas com reflexos
fiscais, como envelhecimento populacional, gestão de recursos naturais e
transição energética combinada com a necessária correção de distorções
remanescentes de uma cultura fiscal contraproducente em um contexto de evolução
das regras fiscais é um convite para a reflexão em um momento em que uma
reforma geral do orçamento parece inevitável e o federalismo fiscal está em
plena transformação.
1) Ver, por exemplo, Koshima, Y., Harris, J.,
Tieman, A. De Sanctis, A. (2021). “The Cost of Future Policy: Intertemporal
Public Sector Balance Sheets in the G7”. FMI WP 128.
2) Chai, H., Harris, J. e Tieman, A. (2024).
“Beyond debt: Net Worth Fiscal Anchors”. FMI WP 137.
*Manoel Pires é coordenador
do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV/Ibre e professor da UnB
e FGV EPPG.
*O autor agradece a Isabela
Duarte pela assistência de pesquisa.
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