O Globo
De uma hora para outra, começou-se a
denunciar o uso da fome como ferramenta de subjugação
Foi a contragosto que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu anunciou, nesta semana, a decisão de entreabrir uma fresta nas inenarráveis condições impostas à Gaza hermeticamente bloqueada desde março. Era preciso estancar a incômoda “campanha global contra alegações de fome extrema no território e aliviar as pressões de nossos aliados na Europa e Estados Unidos”. Por uma questão de relações públicas, decidira que não lhe restava outra opção — as imagens de crianças famélicas em feroz disputa por um punhado de farinha exigiam correção de curso. Era preciso dar um respiro àquele chão ainda chamado de seu por 2,2 milhões de palestinos.
Netanyahu tinha razão de ficar vexado com o
súbito surto de indignação formal da França, Grã-Bretanha, Canadá e outros
contra o estrangulamento de Gaza. Até então, excetuando alguns comunicados de
morna admoestação, as grandes chancelarias vinham mantendo solene tibieza
diante da sistemática inviabilização de vida naquele canto palestino — até
porque várias das armas e bombas que esmigalham a estreita faixa há 18 meses
têm procedência ocidental. De uma hora para outra, começou-se a denunciar o uso
da fome como ferramenta de subjugação. Até na seara do irmão maior — os Estados
Unidos de Donald Trump —,
impaciente em ver o impasse desanuviado para ali criar uma resplandescente
“Riviera” com campos de golfe, mega-hotéis de sua grife — e livre de
palestinos.
Foi assim que, desde a quinta-feira, cem
caminhões de abastecimento (o número necessário seria de 600 ao dia) puderam
atravessar o bloqueio israelense. Na manhã seguinte, 15 desses caminhões foram
assaltados por quem não comia pão havia 80 dias. Agora, o plano conjunto
de Israel e
Estados Unidos é estabelecer um sistema alternativo de distribuição, que não
dependa das tradicionais agências das Nações Unidas voltadas para ajuda
humanitária. Tanto Netanyahu como Trump estão convencidos de que essas agências
são permissivas demais com o braço armado do Hamas, que seria responsável pelos
saques em proveito de sua militância. Só não parece ocorrer aos dois estadistas
que uma multidão faminta e desesperançada também é capaz de derrubar caminhões.
De todo modo, o governo Trump já empoderou uma até então desconhecida Fundação
Humanitária Gaza, fundada na Suíça em fevereiro, para supervisionar a operação
a partir de maio, com o trabalho de campo terceirizado entre duas empresas
privadas de logística e segurança.
O tímido reinício da ajuda humanitária é uma
gota d’água num oceano de horrores impostos à população palestina. Desde o 7 de
outubro de 2023, quando terroristas do Hamas cruzaram a fronteira e trucidaram
1.200 civis e militares israelenses, além de fazer 250 reféns e usá-los como
mercadoria de negociação, a Faixa de Gaza virou experimento de subjugação. Quem
diz isso, a favor ou contra, são vozes do alto escalão do poder israelense. Em
programa da emissora DemocratTV de dezembro de 2024, o condecorado ex-ministro
da Defesa Moshe Yaalon surpreendeu o entrevistador ao declarar que seu país
vinha perdendo a identidade de democracia liberal e corria o risco de se tornar
um “Estado corrupto, messiânico e fascista, que conquista, anexa e faz limpeza
étnica”. O repórter ainda lhe deu uma chance de se corrigir:
— É o que o senhor acha? Que estamos nesse
caminho?
— Já chegamos lá… A limpeza étnica já está
ocorrendo, e não tenho outra palavra para ela — respondeu o militar aposentado
que serviu nas Forças de Defesa de Israel (FDI) por três décadas, inclusive na
unidade de elite Sayeret Matkal. Referia-se ao que já ocorrera na parte norte
de Gaza, evacuada à força e destruída.
Àquela altura, o conceito de erradicação da
vida palestina já tinha adeptos poderosos. O general da reserva Giora Eiland
havia proposto dar apenas duas opções aos palestinos do norte de Gaza:
“Rendição ou morte pela fome”. A coisa avançou várias casas a partir de março
último, quando “Bibi” Netanyahu atropelou a frágil negociação de cessar-fogo em
curso e simplesmente decretou o bloqueio total do território. A suspensão de
qualquer alimento, eletricidade, água, medicamentos, combustível, profetizou o
ministro das Finanças Bezalel Smotrich, da ala ortodoxa mais radical, seria a
forma de abrir “as portas do inferno …da forma mais rápida e mortal”. Também
previu a destruição completa de Gaza, agora sob ocupação definitiva das FDI.
Aos 2,2 milhões de palestinos deslocados do nada para o nada, caberá
espremer-se numa estreita faixa do território. “A população estará totalmente
desesperada, compreenderá que não há mais esperança e começará a buscar por
outro lugar para recomeçar a vida”, garante Smotrich.
Três dias atrás, coube ao ex-membro da
Knesset Moshe Feiglin, cujo neto de 19 anos morreu em combate um ano atrás,
externar sua convicção definitiva: “Toda criança, todo bebê em Gaza é um
inimigo. O inimigo não é o Hamas, nem a ala militar do Hamas... Temos de
conquistar Gaza e colonizá-la e não deixar uma única criança palestina lá. Não
há outra vitória”. No fundo, sua linha de argumentação não é nova. Um ano
atrás, segundo noticiou o diário Haaretz, enveredou por uma comparação tóxica:
“Da mesma forma como Hitler disse ‘não posso viver enquanto sobrar um judeu’,
também nós não podemos viver aqui se um único islamo-nazista permanecer em
Gaza”.
Feiglin, de 63 anos, tem pretensões de se posicionar para tentar chegar a primeiro-ministro de Israel.
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