Folha de S. Paulo
Cabe remontar ao sentido da palavra
‘monstrum’ para ponderar as evidências de formas voltadas para a destruição
Num dos episódios da série
distópica "Black Mirror", soldados são programados por um chip
cerebral para alterar a apreensão da realidade: olhando para pessoas comuns,
supostamente inimigas, enxergam monstros. Ou seja, seres anômalos, fora dos
parâmetros normais. "Monstrum", na Antiguidade, era o sinal dado aos
homens pelos deuses de que uma coisa terrível estava para acontecer.
A palavra latina tem a mesma origem de "mostrar", mas acabou desviando-se da ideia de tornar algo visível para designar disformidades reais ou imaginárias, como Drácula e Frankenstein. Em termos de comportamento, costuma-se atribuir monstruosidade a figuras como Hitler, Stalin, Pol Pot, Bokassa, Pinochet e uma esteira de bárbaros nessa linha.
O que numa entidade dessas aterroriza o senso
comum não é o medo do desconhecido, mas do conhecido que se desconhece, isto é,
de uma familiaridade que inquieta o olhar, o "Unheimlich", como Freud
designou o fenômeno desse estranho reconhecimento. A categoria engloba visões
inexplicáveis, mas mutações de ordem moral em figuras do poder.
Assim é que, de repente, naqueles em que se
confiou pelo voto a representação da normalidade social, se observa a chocante
mutação que "monstra" o sadismo da mortificação dos outros e o
masoquismo primordial do gozo, confirmatório de que o êxtase está no cúmulo do
horror. Disso
dão prova histórica o fascismo, o nazismo e seus sucedâneos dentro e
fora das ditaduras.
A noção de "cúmulo" é um passo
explicativo para esse conjunto de atos incompatíveis com regras inteligíveis e
tornados equivalentes a fatos de natureza. O sujeito considerado monstruoso
perde a qualidade de homem, deslocado para o enigma insondável da
"natureza humana". Essa é a base aproximativa para a elucidação de
condutas que violentam os corpos da civilidade, como a tortura ou a morte
programada de outro.
Entre nós, uma arqueologia recente do
fenômeno teratológico poderia traçar uma linha de continuidade entre um general-presidente
(Geisel, "esse negócio de matar é uma barbaridade, mas tem que ser
feito"), um torturador-mor (Ustra, único condenado por esse crime) e um ex-presidente,
Bolsonaro, para quem "o erro da ditadura foi
torturar e não matar", pois "deveria ter matado 30 mil
brasileiros". Agora revela o policial
Wladimir Soares, preso por participação na trama golpista de 8/1:
"iríamos matar meio mundo de gente". Nessa relação direta do Estado
com a morte, monstruosidade visceral, transparece a cena mais primitiva da
política: o bolsonarismo, fenômeno transicional entre a cirúrgica costura de um
corpo frankensteiniano e um monstrengo ativo na arena partidária.
Num país feito refém de atroz ignorância
cívica, cabe remontar ao sentido originário de "monstrum" para
ponderar não só os sinais, mas as evidências de formas paroxísticas, voltadas
para a destruição e o caos. A ideia de vida como "uma história contada por
um idiota, cheia de som e de fúria, sem sentido algum"
("MacBeth", Shakespeare) abre-se às apropriações
políticas da extrema direita e, claro, à monstruosidade como lugar de
fala neofascista. Idiotas, programados para enxergar apenas inimigos, os
soldados de "Black Mirror" não conseguem ver a si mesmos. Eles, sim,
os verdadeiros monstros dos outros.
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