Valor Econômico
Ao tentar blindar seu programa de governo dos
cortes necessários para o cumprimento do arcabouço fiscal, Lula se vê forçado a
buscar mais recursos para não comprometer as políticas públicas, mas as opções
que parecem disponíveis encontram forte resistência
O recente decreto do presidente Lula sobre IOF deflagrou um grande embate entre os poderes Executivo e Legislativo. Enquanto o governo federal aponta a elevação do IOF como a alternativa possível para viabilizar o arcabouço fiscal, a Câmara dos Deputados dá sinais de que não aceita o uso do dispositivo regulatório IOF como meio arrecadatório. Frente ao impasse, o presidente da Câmara, Hugo Motta, endurece o jogo e sinaliza com a derrubada do decreto presidencial caso o Executivo não apresente uma proposta que seja passável na Casa Legislativa. Assim, o aumento do IOF, decretado por Lula para fechar as contas públicas, virou o estopim de uma guerra silenciosa entre o governo e o Congresso - e expõe uma crise ainda maior: o esgotamento do modelo de financiamento da União.
Nesta coluna, procuro levantar causas do
agastamento entre Legislativo e Executivo que levaram ao embate atual sobre o
IOF. Como veremos, a despesa de Estados e municípios tem sido uma das
principais fontes do desequilíbrio das contas públicas no Brasil, refletindo
uma mudança de organização política do país, com o maior empoderamento do
Legislativo frente ao Executivo. Com isso, uma série de novos desafios de
coordenação econômica, social e política vem se apresentando. A questão se
tornou mais crítica a partir do início do ajuste fiscal implementado pelo
governo federal em 2024, que não teve acompanhamento pelas demais esferas de
governo, dificultando a busca do equilíbrio fiscal e o controle da inflação.
É importante começar a análise trazendo uma
leitura retrospectiva do arranjo federativo brasileiro. Na democratização dos
anos 1980, os governadores foram fundamentais para o desfecho da transição
política. Já as lideranças municipalistas associavam a descentralização à
democracia, participando da formulação de vários pontos da Constituição de
1988. Pela primeira vez, os municípios transformaram-se em entes federativos
com o mesmo status jurídico que Estados e União, um regime federativo
possivelmente único no mundo. Foi, portanto, um período de maior
descentralização do ponto de vista federativo, mas também bastante tumultuado
em termos políticos e econômicos - como fica atestado pela hiperinflação.
Ao longo dos anos 1990, o sucesso do Plano
Real e a crise fiscal dos Estados e de municípios criaram as bases para uma
onda de centralização fiscal, viabilizada devido ao aumento de tributos não
compartilhados com os entes subnacionais.
Como aponta meu colega Manoel Pires, “toda
essa costura federativa levada a cabo durante o governo de Fernando Henrique é
o status quo com o qual nos acostumamos a conviver nas últimas décadas. A
partir da atual década de 2020, porém, assiste-se a uma mudança completa desse
arranjo institucional”.
Que mudança do arranjo institucional seria
essa? Ao analisar as despesas dos entes federativos (excluindo-se juros), é
possível constatar que, entre 2016 e 2019, os gastos médios do governo central
representavam 17,2% do PIB, enquanto os dos estaduais totalizavam 9,8% do PIB,
e os dos municipais, 8,5% do PIB. Com o passar dos anos, entre 2022 e 2024, os
gastos médios do governo central caíram para 16,4% do PIB, já os dos governos
estaduais aumentaram para 10,1% do PIB e os dos municipais saltaram para 10,2%
do PIB. Os dados sugerem um processo de descentralização fiscal. Na realidade,
o que salta aos olhos é o papel que vêm ganhando os municípios. Hoje em dia, os
municípios experimentam um protagonismo de que jamais usufruíram.
Como se vê, ao comparar os períodos 2016-2019
e 2022-2024, observam-se a redução nos dispêndios médios do governo central de
0,8% do PIB e o crescimento da despesa conjunta dos governos central, estaduais
e municipais de 1,2% do PIB.
Sem entrar no mérito dessa nova configuração
financeira federalista, o fato é que o governo central está sendo fiscalmente
apertado em duas frentes. Na primeira, encara o processo de descentralização
fiscal sancionado pelo Congresso Nacional. Por causa do aumento das receitas
que viabilizam as despesas dos governos subnacionais, os mecanismos
institucionais que poderiam ser acionados para aliviar as contas do governo
central ficam exauridos. Dessa forma, não restam muitos caminhos para levantar
novos fundos para equilibrar as contas do governo central.
Uma segunda frente torna ainda mais
desafiadora a missão do governo central de equilibrar as contas públicas: o
crescimento da despesa com três benefícios que são muito caros ao governo
atual: benefícios previdenciários, Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e
Bolsa-Família (BF). No caso, os gastos saíram da média anual de 9,6% do PIB,
entre 2016 e 2019, para 10,2% do PIB, entre 2022 e 2024.
Não é à toa, portanto, que um embate mais
pesado entre Executivo e Legislativo está sendo deflagrado. Ao tentar blindar
seu programa de governo dos cortes necessários para o cumprimento do arcabouço
fiscal, o presidente Lula se vê forçado a buscar mais recursos para não
comprometer as políticas públicas em curso. No entanto, as opções que parecem
disponíveis encontram forte resistência. É, claramente, o caso da proposta de
aumento do IOF.
O Congresso Nacional, por seu turno, não dá
sinais de que tenha a intenção de frear o processo de descentralização fiscal e
facilitar as coisas para o governo federal.
Num contexto no qual o governo parece estar
ficando emparedado, muitos analistas creem que as opções de contenção fiscal
passam por mudanças tais como: nova reforma previdenciária; correção anual do
salário mínimo pela inflação; e reforma administrativa.
Seja como for, com relação ao ano de 2025,
tudo leva a crer que algum entendimento entre Executivo e Legislativo para o
cumprimento do arcabouço fiscal será alcançado. Mas o caminho até lá será
turbulento. Afinal, no momento, algo como R$ 20 bilhões a mais de receita
fechariam as contas. Naturalmente, é um montante expressivo, mas não o
suficiente para gerar um rompimento entre Executivo e Legislativo.
Enfim, é difícil imaginar um cenário no qual
a temperatura do embate fiscal não vá aumentar sobremaneira até as eleições de
2026.
*Luiz Schymura é pesquisador
do FGV Ibre
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