Valor Econômico
Contos do belíssimo livro póstumo de Anna
Maria Martins, “Contos reunidos”, resultam das necessidades expressionais da
classe média brasileira
Antonio Candido, professor de teoria
literária da Universidade de São Paulo, em seu fundamental e decisivo livro
“Formação da literatura brasileira”, usa com frequência a concepção, por ele
desenvolvida, de necessidades expressionais. Isto é, diferentes manifestações
literárias, no tema, na forma e no estilo, sem deixar de ser invenções de um
autor, são também modos determinados de dizer o que por meio do autor a
sociedade tem carência de dizê-lo.
O belíssimo livro póstumo de Anna Maria Martins, também da Academia Paulista de Letras, “Contos reunidos” (2022), é primorosa obra em muitos sentidos. Mas também e sobretudo porque seus contos resultam, pode-se dizer, das necessidades expressionais da classe média brasileira.
A classe média, sociologicamente, não é uma
classe social de verdade. Ela não resulta de um componente estrutural da
sociedade moderna. É apenas um aglomerado de resquícios sociais de outras
classes dessa sociedade, das classes que têm referências singulares e únicas,
como a burguesia, o proletariado e os proprietários de terra. Referências que
ela não tem.
A primeira está, historicamente, condenada a
viver e pensar como proprietária de capital. O capitalista personifica o
capital, do qual é, na prática, um funcionário, mesmo sendo dono dele.
O proletário personifica o trabalho. O
trabalho se apossa de seu corpo e de sua mente. Chaplin, em “Tempos Modernos”,
faz uma comédia que é um documento sobre os gestos do operário possuído pela
linha de produção. Ele se vê como coisa, e não como pessoa.
O proprietário de terra tem seus peculiares
problemas. Terra não é capital, porque é finita, não é produzida nem pode ser
reproduzida. Basta comprá-la, abandoná-la, esperar a valorização, vendê-la e
ganhar a diferença sem tê-la feito produzir.
Anna Maria Martins, em seus contos, expressa
o modo de ser da classe média, resíduos das outras classes, dos que estão
decaindo e dos que estão subindo na vida. É a classe dos que querem mais e dos
que não querem menos. É a classe social que mais sofre porque classe social sem
autenticidade, cópia dos outros, daqueles que quer ser, imita. Imita o cinema,
imita o vizinho, imita os imitáveis. E dissimula o tempo todo. Em seus contos a
autora retrata e trabalha literariamente os pequenos detalhes, as armadilhas da
representação de um modo de ser imaginário, desejado, mas não realizado.
Num dos contos, o personagem é um executivo.
Ocupadíssimo, com compromissos encavalados. Mais compromissos do que o tempo
disponível para atendê-los. “Telefone pra você”, avisa uma secretária. “Peça
que me ligue mais tarde, estou falando com o diretor.” E outra secretária quase
ao mesmo tempo: “Ela está ligando de novo. O que digo?”. E mais outra: “Sua
mulher pediu para você ligar”.
O executivo do conto é o sujeito que está
sempre sendo esperado e procurado e sempre para chegar não chegando. Todo seu
desdobramento em múltiplas pessoas é para um dia chegar ao topo da empresa.
Quando chega, não tem tempo para desfrutar essa chegada.
Tem que atender a multiplicação das
bajulações. Já não é ele quem bajula e dissimula. Agora é ele o objeto de um
cotidiano de sujeições. Na sociologia da vida cotidiana, um dos temas é a
preocupação. A classe média é a classe preocupada, isto é, ocupada antes de se
ocupar, de produzir e de ser.
A sociabilidade da espera, do homem que faz
esperar e da mulher que fica esperando. É natural ter alguém esperando, ter
alguém que está sempre indo, ter alguém que está sempre voltando, ter alguém
que está sempre a caminho, nunca chegando, apenas passando.
Os lugares da vida se tornaram o lugar
nenhum. A sociedade já não tem a alteridade do outro porque fez dele uma
abstração na liquefação das singularidades sociais. Na solidão, a nulificação
do outro para poder ser.
Anna Maria Martins é mestre no desfecho de
seus contos, sempre curtos e de imensa clareza na narrativa da vida cinzenta
dessa gente do meio, que é o lugar nenhum da classe média.
“Plataforma 3” é um de seus mais belos
contos. Enfastiado com a vida conjugal, o sujeito sai de casa, vai embora para
tomar um trem que o leve para outro lugar. No que é, provavelmente, a estação
da Luz, com passageiros que estão partindo e outros que estão chegando, vários
acompanhados da família, filhos, gente feliz. Comove-se, reluta, desiste de
partir e volta para casa. Entra, chama a mulher, e descobre que a casa está
vazia. A mulher se fora.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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