sexta-feira, 13 de junho de 2025

Uma classe social emparedada - José de Souza Martins*

Valor Econômico

Contos do belíssimo livro póstumo de Anna Maria Martins, “Contos reunidos”, resultam das necessidades expressionais da classe média brasileira

Antonio Candido, professor de teoria literária da Universidade de São Paulo, em seu fundamental e decisivo livro “Formação da literatura brasileira”, usa com frequência a concepção, por ele desenvolvida, de necessidades expressionais. Isto é, diferentes manifestações literárias, no tema, na forma e no estilo, sem deixar de ser invenções de um autor, são também modos determinados de dizer o que por meio do autor a sociedade tem carência de dizê-lo.

O belíssimo livro póstumo de Anna Maria Martins, também da Academia Paulista de Letras, “Contos reunidos” (2022), é primorosa obra em muitos sentidos. Mas também e sobretudo porque seus contos resultam, pode-se dizer, das necessidades expressionais da classe média brasileira.

A classe média, sociologicamente, não é uma classe social de verdade. Ela não resulta de um componente estrutural da sociedade moderna. É apenas um aglomerado de resquícios sociais de outras classes dessa sociedade, das classes que têm referências singulares e únicas, como a burguesia, o proletariado e os proprietários de terra. Referências que ela não tem.

A primeira está, historicamente, condenada a viver e pensar como proprietária de capital. O capitalista personifica o capital, do qual é, na prática, um funcionário, mesmo sendo dono dele.

O proletário personifica o trabalho. O trabalho se apossa de seu corpo e de sua mente. Chaplin, em “Tempos Modernos”, faz uma comédia que é um documento sobre os gestos do operário possuído pela linha de produção. Ele se vê como coisa, e não como pessoa.

O proprietário de terra tem seus peculiares problemas. Terra não é capital, porque é finita, não é produzida nem pode ser reproduzida. Basta comprá-la, abandoná-la, esperar a valorização, vendê-la e ganhar a diferença sem tê-la feito produzir.

Anna Maria Martins, em seus contos, expressa o modo de ser da classe média, resíduos das outras classes, dos que estão decaindo e dos que estão subindo na vida. É a classe dos que querem mais e dos que não querem menos. É a classe social que mais sofre porque classe social sem autenticidade, cópia dos outros, daqueles que quer ser, imita. Imita o cinema, imita o vizinho, imita os imitáveis. E dissimula o tempo todo. Em seus contos a autora retrata e trabalha literariamente os pequenos detalhes, as armadilhas da representação de um modo de ser imaginário, desejado, mas não realizado.

Num dos contos, o personagem é um executivo. Ocupadíssimo, com compromissos encavalados. Mais compromissos do que o tempo disponível para atendê-los. “Telefone pra você”, avisa uma secretária. “Peça que me ligue mais tarde, estou falando com o diretor.” E outra secretária quase ao mesmo tempo: “Ela está ligando de novo. O que digo?”. E mais outra: “Sua mulher pediu para você ligar”.

O executivo do conto é o sujeito que está sempre sendo esperado e procurado e sempre para chegar não chegando. Todo seu desdobramento em múltiplas pessoas é para um dia chegar ao topo da empresa. Quando chega, não tem tempo para desfrutar essa chegada.

Tem que atender a multiplicação das bajulações. Já não é ele quem bajula e dissimula. Agora é ele o objeto de um cotidiano de sujeições. Na sociologia da vida cotidiana, um dos temas é a preocupação. A classe média é a classe preocupada, isto é, ocupada antes de se ocupar, de produzir e de ser.

A sociabilidade da espera, do homem que faz esperar e da mulher que fica esperando. É natural ter alguém esperando, ter alguém que está sempre indo, ter alguém que está sempre voltando, ter alguém que está sempre a caminho, nunca chegando, apenas passando.

Os lugares da vida se tornaram o lugar nenhum. A sociedade já não tem a alteridade do outro porque fez dele uma abstração na liquefação das singularidades sociais. Na solidão, a nulificação do outro para poder ser.

Anna Maria Martins é mestre no desfecho de seus contos, sempre curtos e de imensa clareza na narrativa da vida cinzenta dessa gente do meio, que é o lugar nenhum da classe média.

“Plataforma 3” é um de seus mais belos contos. Enfastiado com a vida conjugal, o sujeito sai de casa, vai embora para tomar um trem que o leve para outro lugar. No que é, provavelmente, a estação da Luz, com passageiros que estão partindo e outros que estão chegando, vários acompanhados da família, filhos, gente feliz. Comove-se, reluta, desiste de partir e volta para casa. Entra, chama a mulher, e descobre que a casa está vazia. A mulher se fora.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

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