Folha de S. Paulo
Parlamento não é igreja; trocar a linguagem
laica pela religiosa é confundir o debate político com moral
Retornando ao Congresso para debater o
projeto que, em suas palavras, "quebra a coluna da proteção ambiental no
país", a ministra Marina Silva voltou
a sofrer ataques, como
há um mês. "A senhora como ministra é uma vergonha", ouviu de um
deputado. Da outra vez, ela se retirou dignamente do recinto. Desta, respondeu
quatro vezes com trechos bíblicos. Assegurou que, no futuro, Deus julgaria
quem estava correto.
Na mesma semana, o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (PSD) foi acolhido em uma Assembleia de Deus por um bispo-vereador como "pré-candidato a governador". Seu bilhete de entrada era a construção do Parque Terra Prometida, com temática bíblica, na zona oeste da cidade. O parque contará com representações relevantes para o imaginário evangélico, como o caminho do Monte Sinai, onde Moisés recebe os Dez Mandamentos.
Nada obsta a citações religiosas ou à
encenação de episódios bíblicos em peças teatrais ou filmes. No entanto, a
ministra e o prefeito, embora separados por inclinações partidárias, situam-se
no mesmo plano questionável de uma centro-religiosidade que debilita a
sociedade política.
Fato desconcertante: os discursos públicos
têm sido regidos por uma retórica teológica, disfarçada de centro, para
enriquecimento pessoal e fortalecimento da ultradireita, de megaigrejas, big
techs e agronegócio. Não significa projeto coerente de teocracia, mas
pavimentação de um atalho autocrático por mistura de fé e política, desde o
impeachment de Dilma Roussef em 2016, aos brados de "voto por Deus".
É o "teocracismo", subproduto psicossocial de um capitalismo apenas
predatório, ensejo retórico para manipulação populista da equivalência de Deus
a dinheiro. Adultos espertalhões, mas doença infantil da teocracia.
Toda retórica, técnica de linguagem destinada
a convencer, altera o real por inversões no discurso: ficção em troca do fato,
mito no lugar da história. É próprio à literatura, mas problemático quando a
realidade se produz, por retórica, como vasta prótese de linguagem.
O que humana e civilmente se espera da
política não é o jogo numérico de visualizações que informa as bolhas de
ignorância do mundo real. Espera-se historicidade, ou seja, intervenção por
palavras e ações no jogo dialético da sociedade com o Estado. Parlamento não é
igreja. Trocar linguagem laica por religiosa é confundir debate político com
moral. Inconfesso desejo de uma "sharia" no lugar da Constituição,
implícito na frase "para mim, o que vale é a lei de Deus". Dita pelo
ex-presidente, serve também ao chefe carioca do tráfico no Complexo de Israel.
Marina Silva queria diálogo, os deputados
preferiam passar o trator. Os insultos eram chamariz de atenção das redes, para
encobrir o projeto de devastação do meio-ambiente. A ministra estava só,
falaria sozinha. Talvez devesse ter-se retirado, como antes. Com sua pia
resposta, acabou trocando linguagem de Estado, jurídico-política, por teologia.
Vácua, porém: Deus não faz política.
Já o bíblico Jurassic Park, promessa de um
prefeito atrapalhado com o necessário transporte civil, soa como delírio de
línguas em palanque. Mais um teocracismo em que a vida real se esvai. Ao povo
nas filas resta esperar por divina batida de martelo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.