Correio Braziliense
Soberania não é moeda de troca. Proteger a
democracia brasileira passa por desarmar, com diplomacia e articulação
internacional, as bombas-relógio lançadas por Trump
Menos alegoria de mão e mais samba no pé. É isso que o Brasil precisa fazer para enfrentar a crise diplomática e comercial com os Estados Unidos. O Ministério das Relações Exteriores (MRE), sob o comando do chanceler Mauro Vieira, acerta ao apostar no multilateralismo como linha de resistência às tarifas arbitrárias impostas por Donald Trump. Não será suficiente para conter a pressão de Washington e proteger a soberania nacional, mas é importante externamente, porque mobiliza uma ampla coalizão de países prejudicados pelo tarifaço. E internamente, porque em torno de uma saída diplomática, em vez da escalada do confronto, há amplo consenso político nacional.
Na reunião do Conselho Geral da Organização
Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, o embaixador Philip Gough, representante
do Brasil, foi direto ao ponto: tarifas unilaterais, “implementadas de forma
caótica”, violam princípios básicos do comércio internacional e ameaçam lançar
a economia mundial em uma espiral de estagnação e preços altos. Recebeu apoio
de 40 países, incluindo União Europeia (UE), Canadá e parceiros dos Brics. A
OMC, paralisada em seu sistema de solução de controvérsias, pouco pode fazer na
prática, mas ainda é a guardiã da institucionalidade
Sim, o Brasil reafirmou que prefere diálogo.
A retaliação é medida extrema cujas consequências são imprevisíveis, mas que
podem se tornar necessárias para a soberania nacional. O “tarifaço” de 50%,
previsto para entrar em vigor em 1º de agosto, dificilmente será suspenso de
imediato. Trump usa tarifas não apenas como instrumento econômico, mas como
arma política. Ao defender Jair Bolsonaro e atacar o Supremo Tribunal Federal
(STF), o presidente norte-americano transformou sua superavitária balança comercial
com o Brasil em campo de batalha ideológico.
No pior cenário, Trump pode dobrar a aposta,
ampliando sanções unilaterais, caso o julgamento do ex-presidente brasileiro
avance. O governo Lula precisa adotar medidas de contingenciamento, com
objetivo de redirecionar parte das exportações, absorver no mercado interno o
que for possível e cuidar da manutenção dos empregos e da sobrevivência das
empresas mais prejudicadas.
Desde que voltou à Casa Branca, Trump tem
recorrido a tarifas como instrumento de chantagem, aplicando-as também contra
Canadá, México e Japão. No caso brasileiro, porém, a interferência tem
conotação política mais grave. A chantagem tarifária busca influenciar
processos judiciais internos e fragilizar instituições democráticas. É uma
tática de guerra híbrida: antes, os EUA usavam tanques e telegramas secretos;
agora, pressionam com sanções econômicas e narrativas digitais.
Manobra de sobrevivência
Essa ingerência não é novidade na história
brasileira. O chamado “americanismo”, desde a República Velha, foi um vetor de
modernização pelo alto, associado ao fordismo e ao liberalismo econômico, em
contraposição ao nosso “iberismo” patrimonialista. Durante décadas, foi
sinônimo de eficiência produtiva e progresso social. Sua influência se estende
aos padrões de consumo, de comportamento e à cultura popular. Hoje, sob Trump,
assume uma forma pervertida, uma espécie de “americanismo do mal”, que reforça o
autoritarismo e alimenta aventuras golpistas.
A existência de setores políticos e
empresariais que se associam ao intervencionismo norte-americano também não é
novidade. O paralelo com o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e com o golpe
militar de 1964 é inevitável. Na carta-testamento, Vargas denunciou a
espoliação estrangeira e sacrificou a própria vida para impedir a ruptura
institucional. Dez anos depois, o golpe aconteceu, com apoio direto de
Washington, associado a políticos conservadores como Carlos Lacerda e Magalhães
Pinto e à cúpula militar, o que resultou em 21 anos de ditadura.
Hoje, a ameaça não vem dos quartéis — pelo
contrário, o Alto Comando das Forças Armadas se opôs à tentativa de golpe de
Estado de 8 de janeiro, cujos envolvidos estão sendo julgados, junto com
Bolsonaro. O perigo é sistema articulado de pressão econômica e política, que
se vale das redes sociais e da desinformação.
O Brasil precisa muito da sua diplomacia para
traçar uma rota segura de saída dessa crise. Não haverá solução fácil. É
preciso diversificar parcerias, reforçar laços com a UE, o mundo árabe e os
países asiáticos, com destaque para China, Índia e Indonésia. A aposta no
multilateralismo permanece válida, é o que há de mais permanente na política
mundial, apesar dos ataques que hoje sofre. Diante dos fatos, é preciso reduzir
a dependência econômica em relação aos EUA e reafirmar o país como ator
relevante do Sul Global. Não por acaso, o Brasil aderiu à ação da África do Sul
contra Israel na Corte Internacional de Justiça.
Não nos enganemos. A altivez é sinônimo de
soberania, não a soberba. Não é isenta de riscos e contestação interna, a
exemplo do posicionamento da Confederação Israelita do Brasil, que acusou o
governo de abandonar a tradição de equilíbrio diplomático e de adotar “falsas
narrativas” sobre Gaza, onde os fatos são autoexplicativos. No comércio
exterior, setores como o agronegócio — especialmente café, suco de laranja e
proteínas animais — temem retaliações americanas que podem afetar bilhões de
dólares em exportações.
Retaliar com a Lei da Reciprocidade Econômica
não é boa opção. A saída será a negociação paciente e resiliente, sem covardia.
Soberania não é moeda de troca. Proteger a democracia brasileira passa por
reafirmar a soberania e desarmar, com diplomacia e articulação internacional,
as bombas-relógio deixadas por Trump. Multilateralismo, neste momento, não é
ingenuidade: é estratégia de sobrevivência.
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