domingo, 20 de julho de 2025

Mickey sem Disney - Pablo Spinelli*

Planeta Terra, 2054. Mickey Barnes e seu amigo Timo estão falidos após um fracasso nos negócios e fugindo de um agiota. Sem alternativas, eles se alistam como tripulantes de uma nave que deixa a Terra para colonizar o planeta Nilfheim, projeto do ambicioso casal Kenneth Marshall e sua esposa, Gwendolyn. Enquanto Timo vira parte da equipe de pilotos da nave, Mickey, de forma involuntária e impensada torna-se um “descartável”, um ser humano que terá sua memória condensada e seu corpo será morto com direito a reimpressões que trazem o mesmo corpo de volta, mas com personalidades diferentes. Eis que chega na versão de número 17, que começa por conta de acasos a não encontrar a morte que é dada como certa pela nave, com a versão 18 acabando por ser reimpressa, dilemas para versão 17 começam a surgir, sendo o principal a certeza do fim do seu eterno retorno.

Essa é a breve sinopse do filme de ficção científica e sátira política dirigida e escrita por Bong Joon-ho, diretor premiado por Parasita e estrelada por um dos melhores atores da nova geração – Robert Pattison que, não só improvisou em várias cenas como conseguiu imprimir o ar ingênuo de Mickey 17 e as demais personalidades com maestria e com interpretação corporal que fez lembrar Jim Carrey nos anos 1990. Sucesso estrondoso de público na Coreia do Sul, teve recepção morna nos EUA e por parte da crítica. Agora, disponível na Prime Vídeo, merece uma chance de ser visto em plenas férias escolares.

O filme é extremamente denso nas questões que aborda, apesar de seu leve humor. Ou melhor, por conta de seu humor é que se faz crítico. O casal de líderes neopuritanos responsáveis pela colonização “pura” – leia-se eugênica – de um planeta é interpretado com galhofa e caricatura calculada por Mark Ruffalo (Vingadores) e Toni Colette (Sexto Sentido). Seus discursos midiáticos focados em redes sociais, a postura bufona de um Mussolini e de uma Lady Macbeth fútil servem de indagação acerca de que tipo de elites que temos no mundo. Não há projetos de desenvolvimento, de humanidade, de protagonismo para memoriais filantrópicos, de qualquer desprendimento, pois os valores midiáticos, econômicos e a vertente de um protestantismo sem Jesus – que despreza órfãos, pobres, viúvas e estrangeiros – são a pedra de toque como os devaneios de Elon Musk e sua colonização em Marte.

Outro ponto forte do filme é o tema do “descartável”. Um ser humano que, para fugir dos tempos difíceis na Terra – e eis que aparece novamente, anos depois de Round 6, o tema do endividamento pessoal nesse cenário destruidor de novas e velhas gerações com o sistema financeiro e as bets no celular – acaba por ser uma cobaia de um sem-número de experimentos para proteger um reduzido número de pessoas e, seja pela ciência ou pelos colegas de tripulação, assistimos a uma falta de empatia que nos evoca o tema dos “replicantes” em Blade Runner. Aliás, algo que não vimos e lamentamos na crítica é a ausência de elogios a forma pela qual Joon-ho faz uma reverência aos clássicos como 2001 – uma odisseia no espaço (visual, cenários, trilha), Blade Runner (tema dos replicantes, da percepção da morte), Alien (a presença de um “alienígena” e a crítica a esse termo posto que os alienígenas são os humanos no planeta daquelas espécies), Avatar (a relação entre dois povos em uma dimensão espacial) e Star Wars (Ruffalo/Marshall empunha um sabre de luz vermelho dos siths ao final da trama). As peças descartáveis em tempos de precarização do trabalho são o elemento “estrutural” fora de qualquer terminologia pós-moderna. Pobres – e jovens, de preferência – são o descarte que pode ser reimpresso com nova roupagem à frente.

Ao contrário das distopias recentes do cinema, o filme, mesmo que sob neve ou na clausura espacial, é solar. A relação entre o Mickey 17 e as criaturas ditas “rastejantes” – que são uma homenagem ao famoso Alien – é de uma força simbólica potente da força do diálogo, do abrir-se ao outro, em uma releitura do que poderia ter sido o encontro entre europeus e ameríndios na alvorecer da Idade Moderna. Seu desfecho aponta para reflexões importante:  Nasha (Naomi Ackie) – que emociona com cenas de empatia para com as mortes de Mickey, como a linda cena que remete à Pietá de Michelângelo – encara corajosamente – sem fuga ou atalhos – um julgamento e nele pensa a saída política e democŕatica para reverter o mundo da descartabilidade. E Mickey encara aquilo que um famoso jornalista nos legou: a vida como ela é, com princípio(s), meio e fim, sem medo de ser feliz.

*Pablo Spinelli é Doutorando em Ciência Política (UNIRIO), Mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ) e Professor de História da redes pública (Saquarema/Petrópolis) e privada (Rio de Janeiro).

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