segunda-feira, 7 de julho de 2025

O fardo dos juízes de preto - Demétrio Magnoli

O Globo

Ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o STF conferiu poderes censórios ilimitados às plataformas de redes sociais. De agora em diante, elas terão a obrigação de excluir postagens que poderiam, hipoteticamente, ser definidas como ilegais por um juiz. Os juízes de capa preta imaginam-se regulando a liberdade de expressão de milhões de brasileiros. De fato, terceirizam a robôs decisões delicadas sobre crimes de palavra.

Um trecho do voto de Cármen Lúcia esclarece o argumento dos oito juízes que formaram a maioria:

— A censura é proibida constitucionalmente, mas não se pode permitir que nós estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos. Soberano é o Brasil, soberano é o direito brasileiro.

Os cidadãos são, então, “pequenos tiranos” — bárbaros ou crianças irresponsáveis. Cabe ao “direito brasileiro” — ao soberano STF — conter a massa ignara, restaurando o primado da civilização.

A função precípua do STF é interpretar a Constituição. Luís Roberto Barroso, presidente da Corte, sonha com algo mais transcendental. Nas suas palavras, ao tribunal cabe um “papel iluminista” de, servindo à “causa da humanidade”, “empurrar a História”. Messiânico, almeja deixar como herança a “total recivilização do país”. Soberania popular? Executivo e Congresso escolhidos pelo voto? Não: os bárbaros — 213 milhões menos 11 juízes supremos — serão recivilizados ou reeducados pelos sábios da capa preta. Quem são, efetivamente, os tiranos?

Haveria fortes razões para a responsabilização das plataformas por conteúdos impulsionados ou monetizados, pois, no fim, é esse o fundamento da corresponsabilização dos veículos de imprensa. Mesmo tal iniciativa, porém, deveria partir do Congresso, não de uma interpretação judicial missionária da Constituição.

A alegação dos que defendem a intervenção do STF é que o Congresso nega-se a regulamentar a internet. Falso: o Marco Civil foi aprovado pelos parlamentares em 2014. Em sua sentença genérica e subjetiva, a maioria “iluminista” do STF emite um julgamento universal sobre todas as postagens — e criminaliza a mera opinião. Uma ilustração é a determinação de remoção de posts com “ataques à democracia”, um recipiente conceitual elástico em que é possível encaixar incontáveis conteúdos. Em tese, o crime poderia abranger frases recorrentes de Lula (celebrando a “democracia” venezuelana) ou de Bolsonaro (expressando saudade da ditadura militar).

Pela esquerda ou pela direita, quase tudo converte-se em alvo legítimo de proibição. Vale elogiar o sistema político cubano? E o tirano salvadorenho Bukele? A decisão, segundo os magistrados “civilizatórios” compete ao Google, à Meta, ao X ou ao TikTok — aos proprietários bilionários de empresas privadas estrangeiras. Eis aí o “soberano direito brasileiro” invocado por Cármen Lúcia.

Obviamente, guiados por seus escritórios de advocacia, as plataformas optarão pela via mais segura para seus negócios. Preventivamente, formularão algoritmos destinados a excluir qualquer coisa que possa, hipoteticamente, enquadrar-se nos extensos critérios de criminalização dos juízes iluminados. Tempos estranhos, de uma polarização política que conduz ao abandono de princípios básicos. Existem até jornalistas defendendo a censura robótica dos cidadãos comuns, agora qualificados como uma horda de bárbaros. O que dirão esses jornalistas cúmplices quando o impulso “recivilizatório” alcançar a imprensa profissional — eles mesmos?

Lá atrás, no século IV a.C., Platão profetizou que “até que os filósofos sejam reis, ou os reis e príncipes deste mundo tenham o espírito e o poder da filosofia, as cidades nunca terão descanso de seus males”. O sonho da República governada por filósofos, limpa das impurezas das massas incultas, é tão antigo quanto a pólis. Os oito cavaleiros andantes da censura nas redes o retomam, mas de um jeito bem ibérico, pelo qual os juízes de capa preta declaram-se filósofos e assumem o fardo de “recivilizar” a plebe de “pequenos tiranos”.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.