O Globo
Ao declarar a inconstitucionalidade do artigo
19 do Marco Civil da Internet, o STF conferiu poderes censórios ilimitados às
plataformas de redes sociais. De agora em diante, elas terão a obrigação de
excluir postagens que poderiam, hipoteticamente, ser definidas como ilegais por
um juiz. Os juízes de capa preta imaginam-se regulando a liberdade de expressão
de milhões de brasileiros. De fato, terceirizam a robôs decisões delicadas
sobre crimes de palavra.
Um trecho do voto de Cármen
Lúcia esclarece o argumento dos oito juízes que formaram a maioria:
— A censura é proibida constitucionalmente,
mas não se pode permitir que nós estejamos numa ágora em que haja 213 milhões
de pequenos tiranos soberanos. Soberano é o Brasil, soberano é o direito
brasileiro.
Os cidadãos são, então, “pequenos tiranos” — bárbaros ou crianças irresponsáveis. Cabe ao “direito brasileiro” — ao soberano STF — conter a massa ignara, restaurando o primado da civilização.
A função precípua do STF é interpretar a
Constituição. Luís
Roberto Barroso, presidente da Corte, sonha com algo mais transcendental.
Nas suas palavras, ao tribunal cabe um “papel iluminista” de, servindo à “causa
da humanidade”, “empurrar a História”. Messiânico, almeja deixar como herança a
“total recivilização do país”. Soberania popular? Executivo e Congresso
escolhidos pelo voto? Não: os bárbaros — 213 milhões menos 11 juízes supremos —
serão recivilizados ou reeducados pelos sábios da capa preta. Quem são,
efetivamente, os tiranos?
Haveria fortes razões para a
responsabilização das plataformas por conteúdos impulsionados ou monetizados,
pois, no fim, é esse o fundamento da corresponsabilização dos veículos de
imprensa. Mesmo tal iniciativa, porém, deveria partir do Congresso, não de uma
interpretação judicial missionária da Constituição.
A alegação dos que defendem a intervenção do
STF é que o Congresso nega-se a regulamentar a internet. Falso: o Marco Civil
foi aprovado pelos parlamentares em 2014. Em sua sentença genérica e subjetiva,
a maioria “iluminista” do STF emite um julgamento universal sobre todas as
postagens — e criminaliza a mera opinião. Uma ilustração é a determinação de
remoção de posts com “ataques à democracia”, um recipiente conceitual elástico
em que é possível encaixar incontáveis conteúdos. Em tese, o crime poderia abranger
frases recorrentes de Lula (celebrando
a “democracia” venezuelana) ou de Bolsonaro (expressando saudade da ditadura
militar).
Pela esquerda ou pela direita, quase tudo
converte-se em alvo legítimo de proibição. Vale elogiar o sistema político
cubano? E o tirano salvadorenho Bukele? A decisão, segundo os magistrados
“civilizatórios” compete ao Google, à Meta, ao X ou ao TikTok — aos
proprietários bilionários de empresas privadas estrangeiras. Eis aí o “soberano
direito brasileiro” invocado por Cármen Lúcia.
Obviamente, guiados por seus escritórios de
advocacia, as plataformas optarão pela via mais segura para seus negócios.
Preventivamente, formularão algoritmos destinados a excluir qualquer coisa que
possa, hipoteticamente, enquadrar-se nos extensos critérios de criminalização
dos juízes iluminados. Tempos estranhos, de uma polarização política que conduz
ao abandono de princípios básicos. Existem até jornalistas defendendo a censura
robótica dos cidadãos comuns, agora qualificados como uma horda de bárbaros. O
que dirão esses jornalistas cúmplices quando o impulso “recivilizatório”
alcançar a imprensa profissional — eles mesmos?
Lá atrás, no século IV a.C., Platão
profetizou que “até que os filósofos sejam reis, ou os reis e príncipes deste
mundo tenham o espírito e o poder da filosofia, as cidades nunca terão descanso
de seus males”. O sonho da República governada por filósofos, limpa das
impurezas das massas incultas, é tão antigo quanto a pólis. Os oito cavaleiros
andantes da censura nas redes o retomam, mas de um jeito bem ibérico, pelo qual
os juízes de capa preta declaram-se filósofos e assumem o fardo de
“recivilizar” a plebe de “pequenos tiranos”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.