domingo, 27 de julho de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Trump precisa adiar tarifaço e iniciar negociação

O Globo

A lógica da ameaça não funcionará com o Brasil. Além de terras-raras, há outras questões de interesse mútuo

O comportamento do presidente Donald Trump nas relações internacionais costuma ter um padrão. Primeiro, anuncia datas para a imposição de tarifas escorchantes a um país ou bloco econômico, acompanhadas de demandas absurdas. Num segundo momento, começa a negociar. É hora de Trump dar início a essa segunda fase com o Brasil, congelando a ameaça da agressão tarifária marcada para sexta-feira. A imposição do tarifaço seria prejudicial para os dois lados. Além de perdas econômicas bilionárias, a agressão desmedida acirraria os ânimos, retardando ainda mais o entendimento entre aliados históricos. Na defesa de seus próprios interesses, Trump deveria baixar a bazuca das tarifas e começar a conversar.

Como antecipou O GLOBO, Gabriel Escobar, principal representante americano no Brasil, ressaltou o interesse dos Estados Unidos por um conjunto de minerais conhecido como terras-raras, matéria-prima para os setores militar e de energia. Dono de uma das maiores reservas, o Brasil é protagonista nessa área. Ao deixar de lado demandas absurdas, como o cancelamento do julgamento de Jair Bolsonaro, e se concentrar na economia, Trump terá a chance de explicar melhor seus planos na mineração.

As riquezas do subsolo são monopólio da União, e sua exploração é concedida a empresas de diferentes nacionalidades. Isso não deve mudar. Mas é legítimo discutir um acordo para a venda de terras-raras de forma preferencial aos Estados Unidos, desde que a preços de mercado e com contrapartidas. O Brasil quer aumentar a extração e explorar a capacidade de processamento. Hoje os chineses respondem por mais de metade da mineração e quase todo o refino.

Destacado para tratar da questão com os Estados Unidos, o vice-presidente Geraldo Alckmin, que também é ministro do Desenvolvimento, Indústria Comércio e Serviços, afirmou que a pauta da mineração “é muito longa e pode ser explorada e avançada”. Ele tem razão. Compostas por 17 elementos químicos, as terras-raras são essenciais na fabricação de baterias, chips, radares, satélites, painéis solares, turbinas de jatos, entre vários outros produtos. Não é do interesse brasileiro que os minérios críticos sejam exportados apenas em forma bruta.

Do ponto de vista americano, diversificar os fornecedores de terras-raras é prioridade. Cerca de 80% da demanda dos Estados Unidos é hoje coberta pela China. O esforço de diminuir sua dependência do principal rival é tamanho que o Departamento de Defesa anunciou no início do mês a compra de 15% das ações da MP Materials, tornando o governo o principal acionista do único produtor de terras-raras nos Estados Unidos. Investimento dessa ordem não era feito desde que as ferrovias foram nacionalizadas, na Primeira Guerra Mundial.

Pode ser positivo conversar com um país em busca de um produto que o Brasil tem com tanta fartura. Há uma série de outras questões comerciais e de investimento de interesse mútuo. Mas para que isso ocorra de forma proveitosa, Trump precisa adiar o tarifaço e dar logo início a negociações técnicas. A lógica da ameaça não funcionará com o Brasil.

Mortes e incapacitação de crianças no trabalho envergonham o país

O Globo

São mais de três acidentes fatais por mês. Repressão a irregularidades precisa ser intensificada

O trabalho infantil e a incidência nele de acidentes que incapacitam crianças e adolescentes são inaceitáveis. No Brasil, o trabalho é proibido até os 13 anos e só é liberado a partir dos 14 para a função de aprendiz. Antes de completar 18 anos, crianças e adolescentes não podem trabalhar em máquinas, nas ruas, na agricultura ou à noite. Na vida real, todos sabem, é diferente.

A precariedade social de famílias de baixa renda empurra crianças e jovens para o mercado de trabalho, tirando-os das salas de aula. Com isso, eles perdem a chance de ascender socialmente pela educação e, assim, tendem a repetir a história dos pais. Mudam as gerações, e a pobreza continua. Em 2000, trabalhavam 5 milhões de crianças e adolescentes, segundo o IBGE. No ano passado, estavam nessa situação 1,6 milhão, uma queda grande, mas muito longe de permitir que o país atinja o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), fixado pelas Nações Unidas, de zerar o trabalho infantil neste ano.

Para agravar o problema, a tendência dos acidentes nesse tipo de trabalho, que era de queda desde 2013, mudou bruscamente de sinal em 2020 e passou a crescer, como revelou O GLOBO. Até no emprego formal, em que o menor trabalha como aprendiz com carteira assinada, tem ocorrido mortes. O número total de acidentes fatais verificados na faixa etária de 5 a 17 anos chegou a 42 em 2024, um salto de 223% ante os 13 de 2020, ano da pandemia da Covid-19. São mais de três por mês. De 2007 a maio deste ano, mais de mil crianças e adolescentes ficaram incapacitados total ou parcialmente e 415 morreram em ambientes de trabalho, entre elas 22 crianças com menos de 13 anos, segundo dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

O empobrecimento das famílias causado pela pandemia, de acordo com a médica sanitarista Élida Hennington, da Fiocruz, induziu a entrada de mais crianças e adolescentes no mercado de trabalho, e, como consequência, passou a haver mais acidentes com eles. “A maior participação em trabalhos perigosos e insalubres pode ter contribuído para esses eventos”, diz.

Como há ainda o trabalho infantil “invisível”, não detectado pelos órgãos de controle, também existe o acidente não notificado. O Ministério do Trabalho tem um Grupo Móvel do Trabalho Infantil. Ele resgata quase 3 mil crianças por ano de atividades inadequadas. Já foram retirados menores de polo têxtil em que cumpriam jornadas de nove horas diárias. Uma criança estava manuseando uma lata de querosene e fogo para queimar pontas de fios. Outra foi encontrada em um açougue numa máquina de moer carne. Quanto maior for o desvio de crianças e adolescentes da escola para o mercado de trabalho precarizado, menor a chance do país de mudar de patamar de desenvolvimento.

Passou da hora de a Câmara cortar seus próprios gastos

Folha de S. Paulo

Motta empregou funcionárias fantasmas; despesa para contratações sem fiscalização da jornada é de mais de R$ 1 bi por ano

Como presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB) tem insistido na necessidade de o governo resolver os problemas fiscais do país por meio do corte de gastos, não do aumento de impostos. É um discurso correto; suas práticas, contudo, passam longe de seguir o mesmo caminho.

Ao contrário: quando se trata de zelar pelas verbas ao seu alcance, Motta parece considerar que os cofres públicos podem ser utilizados sem limites.

Tome-se o caso de seu gabinete, irrigado por R$ 133 mil mensais para a contratação de 5 a 25 pessoas em cargo de assessoria. Pois o que faz o parlamentar para otimizar o uso desse dinheiro? Ao que tudo indica, pouco.

Conforme revelou reportagem da Folha, Motta empregou na Câmara ao menos três funcionárias com rotinas incompatíveis com suas funções no Legislativo.

As três foram contratadas para o cargo de secretário parlamentar, com jornada de 40 horas semanais e proibição de exercer outra função pública. Nenhuma delas cumpre todos esses requisitos, assim como nenhuma delas soube explicar em que consiste o trabalho no gabinete de Motta.

Em outras palavras, são funcionárias fantasmas —e, somadas, elas já consumiram R$ 112 mil somente neste ano, considerando salários, auxílios e gratificações.

O presidente da Casa tentou se explicar, sem muito êxito. Disse que preza pelo cumprimento rigoroso das obrigações de quem atua em seu gabinete, mas não conseguiu comprovar a afirmação nem citou os casos concretos; em contrapartida, demitiu duas das funcionárias fantasmas.

É pouco para alguém que, sendo o presidente da Câmara mais jovem da história, foi apresentado por aliados como o rosto da renovação no Legislativo. No que diz respeito ao patrimonialismo —uso de recursos públicos como se fossem privados—, Motta reitera os mesmos comportamentos aviltantes de sempre.

Ele simboliza, isto sim, o descaso dos deputados com os impostos pagos no Brasil. Não fosse assim, jamais permitiriam que a Câmara gastasse R$ 1 bilhão por ano com funcionários cuja jornada não é controlada nem fiscalizada —pode-se imaginar quantos fantasmas entram nessa farra.

Tudo isso sem contar os cerca de R$ 50 bilhões destinados às emendas parlamentares, uma despesa de caráter obrigatório que é executada sem monitoramento nem plano estratégico.

Diante de tanto descalabro, não surpreende que, segundo pesquisa Datafolha, quase 60% dos brasileiros tenham vergonha dos atuais congressistas —índice que não difere muito do registrado em relação aos demais Poderes.

O que surpreende é a desfaçatez do Congresso ao aprovar projeto de lei para aumentar o número de deputados. Como se vê com o exemplo do esquema de Motta, o Legislativo precisa cortar cargos e enxugar gastos, não ampliá-los. Daí que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acertou ao vetar a iniciativa.

Fantasma de Epstein assombra Trump mais do que nunca

Folha de S. Paulo

Especulações sobre ligação do presidente americano com magnata que se matou numa cela em 2019 provocam disputa política

A história da política americana registra episódios em que cadáveres insepultos assombraram figuras poderosas, mas usualmente o impacto decresce com o tempo. Com Donald Trump, como é a praxe, as regras não se aplicam.

O presidente dos Estados Unidos está há semanas tentando se livrar de um caso em teoria encerrado em 2019, quando Jeffrey Epstein foi achado enforcado na cela em que aguardava julgamento, em aparente suicídio.

Magnata do setor financeiro, Epstein foi acusado de ser um dos mais influentes traficantes de mulheres, abusador de menores e promotor de festas sexuais nos EUA. Um de seus clientes mais famosos foi o príncipe Andrew, ostracizado na família real britânica após fazer um acordo para não ser julgado.

Com origens nova-iorquinas e personalidades semelhantes, não demorou para Trump e Epstein virarem amigos. Por 15 anos, frequentaram festas e viagens, rompendo em 2004. Depois disso, não há registro de contato entre eles.

Epstein foi preso duas vezes, e Trump nunca foi citado nesses processos. Os fumos tóxicos, porém, permaneceram no ar, muito por culpa do republicano, que passou a acusar políticos do rival Partido Democrata de estarem na notória "lista de Epstein", que traria clientes do falecido.

Disse que a administração de Joe Biden havia acobertado a apuração. Eleito, passou a esquecer o assunto, até que o ex-aliado Elon Musk sugeriu que o presidente estava na lista.

No começo de julho, revisão do Departamento de Justiça sobre o caso descartou a tal listagem, e Trump causou a ira de apoiadores ao dizer que o documento seria uma invenção democrata.

Tentou então ganhar tempo e solicitou à Procuradoria a divulgação dos documentos que julgar críveis, o que ainda não ocorreu. A Justiça negou revelar alguns autos. Os republicanos anteciparam o recesso parlamentar a fim de evitar moção para obrigar a liberação e convocar a ex-namorada de Epstein, condenada a 20 anos de cadeia, para depor.

O presidente deu sinais de incômodo, rompendo com o até então próximo The Wall Street Journal por ter citado a suposta existência de um bilhete de parabéns pelos 50 anos de Epstein, feito em 2003 por Trump, que alude a segredos compartilhados e é adornado com desenho de mulher.

Enquanto isso, tenta mudar o enfoque para supostas manipulações do governo de Barack Obama no relatório que indicou que os russos interferiram no pleito em que Trump foi eleito em 2016. Nada indica que dará certo.

O império do dólar e seu maior inimigo

O Estado de S. Paulo

O maior risco à hegemonia do dólar, que ainda sustenta a supremacia econômica americana no mundo, não vem dos arranjos do Brics ou quaisquer outros, mas da própria Casa Branca

Desde a criação do sistema internacional que organizou a economia global depois da 2.ª Guerra, articulada na Conferência de Bretton Woods, em 1944, o dólar americano ocupa o centro do sistema financeiro internacional. A combinação de poder econômico, estabilidade institucional e domínio geopolítico garantiu à moeda dos Estados Unidos um status sem paralelo: principal meio de troca global, reserva de valor preferencial e instrumento decisivo de influência internacional. Mas essa supremacia construída ao longo de oito décadas é hoje alvo de uma ofensiva inesperada: não de Pequim, Moscou ou, muito menos, Brasília – mas do próprio presidente americano.

A reação virulenta do presidente dos EUA, Donald Trump, a qualquer sugestão de substituição do dólar por alternativas regionais – como as aventadas no Brics – revela mais do que uma atitude protecionista. Ela expõe o fato incômodo de que a moeda americana é hoje o principal resquício da supremacia econômica dos EUA do pós-guerra. Desde a década de 1990, os EUA vêm perdendo participação relativa na produção industrial e no comércio mundial. Em 1990, o país respondia por cerca de 21% do PIB global em paridade de poder de compra; hoje, responde por pouco mais de 14%. A China já é a maior potência industrial e o maior exportador do mundo. O que resta de incontestável é o dólar – e por isso mesmo Trump o protege com garras afiadas.

Não se trata, no entanto, de uma proteção racional. Paradoxalmente, é o próprio Trump quem mais ameaça a hegemonia do dólar. Ao adotar políticas fiscais irresponsáveis, atacar a independência do Federal Reserve (o banco central dos EUA), romper consensos internacionais e transformar tarifas em instrumento de retaliação pessoal, o presidente enfraquece as bases de confiança que sustentam a moeda americana. Investidores estrangeiros já demonstram desconforto: o dólar caiu cerca de 10% desde o início do ano, mesmo em meio a choques globais – o oposto do que costuma ocorrer com uma moeda refúgio.

Os exemplos se acumulam. Em julho, Trump ameaçou impor tarifas de 50% contra o Brasil em represália ao julgamento de Jair Bolsonaro, e lançou sanções contra ministros do Supremo Tribunal Federal. Ao fazê-lo, minou a confiança na previsibilidade jurídica dos EUA. Ao mesmo tempo, sugeriu a demissão do presidente do Fed, Jerome Powell, e flertou com a ideia de tributar ativos americanos detidos por estrangeiros. Tudo isso num momento em que o déficit público se aproxima de 7% do PIB e a dívida bruta supera os US$ 35 trilhões – condições que tendem a ser agravadas pelo “grande e belo” pacote fiscal de Trump recém-aprovado pelo Congresso. A combinação de desordem nas contas públicas, instabilidade institucional e nacionalismo econômico é tóxica para a credibilidade de qualquer moeda.

Ainda assim, o dólar segue dominante – mas por falta de alternativas. O euro permanece limitado por entraves fiscais e políticos; o yuan chinês sofre com controles de capital e opacidade institucional. Moedas digitais de bancos centrais, como o projeto do Brics Pay, ainda estão em fase experimental. Quase 90% das transações cambiais e 60% das reservas cambiais globais envolvem o dólar. O mundo pode estar insatisfeito com essa dependência, mas não encontrou substituto à altura.

Essa força relativa, porém, não garante eternidade. O privilégio exorbitante de emitir a moeda reserva do mundo exige contrapartidas: estabilidade, previsibilidade, respeito ao Estado de Direito e responsabilidade fiscal. Ao desprezar esses pilares, Trump sabota aquilo que pretende proteger. Se a confiança no dólar ruir, o impacto será global – e o maior responsável não será o Brics, mas a própria Casa Branca.

Como qualquer hegemonia, a monetária não é ideal, mas, na prática, um mundo sem a dominância do dólar reinante até aqui pode ser menos eficiente, mais fragmentado e mais vulnerável a choques. É possível que vejamos o surgimento de blocos cambiais regionais, moedas digitais interoperáveis e redes financeiras alternativas. Mas essa transição, se ocorrer de forma abrupta e desordenada, terá custos imensos. O dólar ainda reina – mas seu trono nunca esteve tão ameaçado por quem dele mais se orgulha.

Apatia democrática

O Estado de S. Paulo

Ignorância da população sobre emendas parlamentares, detectada em pesquisa, é algo perturbador, pois revela desinteresse pela destinação do dinheiro público, parte essencial da democracia

É desanimador o resultado da pesquisa Genial/Quaest divulgada na semana passada sobre a avaliação que a população faz a respeito do Congresso. Simplesmente três em cada quatro brasileiros não sabem que os parlamentares terão direito a R$ 50 bilhões em emendas neste ano. Não há espaço para tergiversações a respeito da pergunta, que não poderia ser mais clara e direta sobre a apatia da maioria dos brasileiros a respeito de um tema que se tornou central para a compreensão da política nacional nos últimos anos.

Do total de 2.004 pessoas que participaram do levantamento, feito entre os dias 10 e 14 de julho, 72% responderam não saber e apenas 27% disseram ter conhecimento. A margem de erro é de dois pontos porcentuais para mais ou para menos. O desconhecimento é maior entre mulheres, entre os mais jovens, entre aqueles com formação até o ensino fundamental e entre pessoas com renda de até dois salários mínimos, mas independe do sexo, idade, formação, classe social, religião e posicionamento político. É amplamente majoritário entre eleitores que, no segundo turno de 2022, votaram em Lula da Silva e Jair Bolsonaro e ainda maior entre os que votaram em branco, nulo ou não foram às urnas.

Essa ignorância não é algo que se possa relevar, mesmo porque o assunto frequenta as manchetes dos jornais desde que este jornal revelou, em 2021, numa série de reportagens, os meandros do chamado “orçamento secreto” – por meio do qual o governo do então presidente Jair Bolsonaro distribuiu verbas para deputados e senadores com o objetivo de criar uma base de apoio no Congresso.

A origem desse esquema se deu por meio das emendas de relator. A chamada RP-9 era uma forma de escamotear a divisão de recursos e que nada tinha a ver com a figura do relator do Orçamento. Tudo era coordenado pela cúpula da Câmara e do Senado, sem qualquer transparência, a ponto de nem mesmo o Executivo saber dizer para onde havia sido enviada a verba, para que projeto e por ordem de quem. Coube ao Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a evidente inconstitucionalidade desse instrumento no fim de 2022.

Esse talvez tenha sido o momento em que as emendas parlamentares mais tenham recebido atenção por parte da imprensa, mas não foi o único. Na última década, o Congresso promulgou mudanças constitucionais que tornaram obrigatório o pagamento das emendas individuais, em março de 2015, e das emendas de bancada, em junho de 2019, e que permitiram a transferência direta de recursos a Estados e municípios sem projeto ou obra vinculada – as chamadas “emendas Pix”, em dezembro de 2019. Depois do orçamento secreto, o Congresso recorreu às emendas de comissão para tentar repetir o modelo anterior.

Parte da tumultuada relação entre os Três Poderes se deve a isso. De um lado, o Congresso não quer abrir mão do poder que as emendas lhe deram nos últimos anos; de outro, o Executivo quer reaver o controle sobre os recursos públicos. Sem acordo entre as partes, o STF tenta encontrar uma maneira de conciliar esses interesses sem que haja afronta aos princípios constitucionais da administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Cada capítulo desse longo imbróglio tem sido acompanhado pela imprensa. Não faltam reportagens a apontar as distorções geradas por esse esquema, como os desertos políticos – municípios que não recebem verba por não terem um deputado para defendê-los em Brasília.

Se há algo que deveria interessar à sociedade é o destino do dinheiro público, que, por óbvio, não é infinito. Sendo impossível atender a todas as demandas por recursos, parece claro que o tema deveria ser acompanhado com lupa por quem contribui e depende deles.

Essa consciência é parte da essência da democracia. Para a maioria do Congresso, no entanto, tanta indiferença tem sido bastante útil, pois quem consegue indicar mais emendas logra ganhar mais votos nas eleições, perpetuando-se no Congresso e nas prefeituras Brasil afora.

Descontrole do além

O Estado de S. Paulo

TCU revela que o Estado paga benefícios a mortos enquanto nega dignidade aos vivos

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a qualidade dos dados do Sistema Nacional de Informações de Registro Civil (Sirc) revelou um escândalo grotesco: entre 2016 e 2025, o governo federal gastou R$ 4,4 bilhões com o pagamento de benefícios e salários a pessoas mortas. O mais alarmante é que esse descalabro está em curso. Segundo o TCU, R$ 28,5 milhões continuam sendo pagos mensalmente em nome de beneficiários que já não estão vivos. Ou seja, o Estado brasileiro gasta com os mortos enquanto nega dignidade a milhões de vivos. Não há imagem mais cruel da inépcia da máquina pública.

O relatório da Corte de Contas escancara a precariedade de um controle administrativo dos mais básicos no País. No período analisado, aproximadamente 275 mil pessoas mortas “receberam”, por assim dizer, os valores correspondentes a benefícios sociais, como o Bolsa Família, previdenciários e trabalhistas. Entre os mortos, há até funcionários públicos que continuam na folha de pagamento da União. Das duas, uma: ou tamanho descontrole é deliberado, vale dizer, uma fraude para desviar recursos públicos, ou se trata de incúria pura e simplesmente. Seja qual for o caso, está-se diante de um profundo desrespeito com os contribuintes.

Toda essa caríssima bagunça expõe um problema que insiste em aferrar o Brasil ao atraso: a ausência de sistemas confiáveis de verificação de elegibilidade de benefícios e o colapso da articulação entre bases de dados federais, estaduais e municipais. Mais do que um problema técnico, é uma falência política. Como é possível que, em plena era da informação, o Estado brasileiro não consiga saber nem sequer quem está vivo ou morto?

É evidente que, à luz do período analisado, a responsabilidade por essa falha inadmissível não recai apenas sobre um governo. É uma sucessão de mandatos que, por inépcia, desleixo ou cumplicidade, mantiveram operante um sistema que permite desvios grosseiros como os revelados pelo TCU, malgrado silenciosos. Enquanto ainda se gasta bilhões de reais com mortos, o País segue convivendo com a vergonhosa deficiência na oferta de saneamento básico, a precariedade da saúde pública e a crônica deficiência da educação básica. O Orçamento da União, que deveria ser um instrumento de democracia social por excelência, acaba capturado por uma estrutura disfuncional, clientelista e, em muitos aspectos, irresponsável.

Em uma república que se pretende democrática, a transparência e a eficiência no gasto dos recursos públicos não são virtudes, mas deveres. A saúde fiscal do Estado exige escolhas inteligentes e republicanas na definição de prioridades, mas também impõe o desenvolvimento de mecanismos eficazes de controle e correção de desvios. Sem isso, não há planejamento que pare de pé, condenando milhões de brasileiros a uma vida indigna em pleno século 21.

Em números absolutos, a bem da verdade, nem se trata de tanto dinheiro. Mas o que o TCU encontrou decerto é só uma ínfima parte da miríade de dutos por onde escoam outros bilhões de reais à toa, no melhor cenário, ou para enriquecer ilicitamente gente hábil em explorar as deficiências administrativas de um Estado mastodôntico, no pior.

 

Violência em casa, um inimigo comum

Correio Braziliense / Estado de Minas

Aumento dos casos de feminicídio e violência sexual mostra que a violência no Brasil está migrando das ruas para dentro de casa. E se mostra muito presente no c

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na semana passada, revelou um fenômeno preocupante: a violência está migrando das ruas para dentro de casa. E se mostra muito presente no cotidiano familiar. Enquanto o país registrou uma queda de 5% no total de mortes violentas (homicídio, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e letalidade policial), com 44.127 mil ocorrências em 2024, dois delitos específicos tiveram aumento e alcançaram tristes recordes. O primeiro dado alarmante é o feminicídio. No ano passado, 1.492 brasileiras foram assassinadas pelo fato de serem mulheres.

Trata-se do recorde de óbitos registrados desde 2015, quando foi sancionada a lei do feminicídio. Mais impressionante, o Anuário da Violência indica que nada menos que 100 mil medidas protetivas foram descumpridas. Dito de outra forma: 18% dos agressores que receberam ordem da Justiça para se manterem afastados das vítimas ignoraram a determinação. A cada dia, quatro cidadãs tiveram a vida brutalmente interrompida por covardes, com sequelas para familiares, como filhos e avós. Cada vítima de feminicídio significa uma criança desamparada, um lar desprovido, uma oportunidade de trabalho que se esvai, o sonho de uma educação digna encerrado.

São muitas e profundas as marcas deixadas por essa tragédia social que desafia não apenas as autoridades de segurança pública, mas a sociedade. Outra calamidade no país são os indicadores de violência sexual. Em 2024, houve impressionantes 87,5 mil casos de estupro – é o maior número de registros realizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública desde o início da série histórica, em 2011. Mais de 60% das vítimas tinham menos de 14 anos — um terço são crianças e adolescentes entre 10 e 13 anos de idade. As mulheres sofreram a violação sexual em 88% das ocorrências.

Em uma dificuldade adicional no combate a esse tipo de violência, os crimes de natureza sexual são marcados pela subnotificação. Além disso, uma parte significativa dos abusos ocorre dentro do ambiente doméstico e é praticada por um parente ou ex-parceiro íntimo. Essa amostra de dados evidencia como Estado e sociedade precisam unir forças para combater essa chaga que atinge milhões de brasileiros.
Ao poder público, é fundamental aprimorar os instrumentos de prevenção e combate aos crimes de motivação pessoal, como feminicídio e abuso sexual. Quanto à comunidade, é preciso criar redes de solidariedade e vigilância para impedir que agressores cometam suas atrocidades contra mulheres e vulneráveis. O silêncio só alimenta a sanha dos criminosos habituados a agir nas sombras. 

Uma boa notícia, mas preocupante

O Povo (CE)

A questão é que se trata de um ambiente no qual algum tipo de controle se faz necessário, evitando-se que gente inocente, até pela falta de uma vivência suficiente para levar às melhores escolhas, seja colocada ao alcance de práticas para as quais não está preparada

A sociedade contemporânea lida com problemas que exigem a melhor compreensão possível, na perspectiva de se entender os limites e as possibilidades que o mundo novo oferece. Dados de 2024 que foram colhidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados durante a semana, oferecem números quantitativos e atualizados sobre um problema, que exige cuidado e delicadeza para ser enfrentado: a relação das novas gerações com as ferramentas online.

Deu-se um salto, aponta o IBGE, na quantidade de crianças cearenses da faixa entre 10 e 13 anos com acesso à internet. O comparativo é entre o índice colhido em 2016, que era 55,9%, e o de 2024, quando o percentual pula para 84,4%, o que expõe um avanço importante e, diante de desafios intrínsecos ao tempo moderno, até passível de uma comemoração por expressar uma melhoria objetiva na realidade.

A questão, porém, deve envolver também a necessidade de se estabelecer limites, para os quais não existe ainda uma fórmula clara com o propósito de evitar que prevaleça na formação humana de nossas crianças o lado negativo de um mundo pouco regrado, como é a característica fundamental hoje do ambiente digital.

É um debate sério e que não pode ser contaminado por uma outra discussão que já acontece, mais relacionada à população adulta e ao interesse manifesto por segmentos da sociedade de terem garantido o direito pleno que reivindicam ao uso da liberdade de expressão, no seu conceito extremo muitas vezes.

Os dados extraídos da "Pnad Contínua: Características de Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad TIC) 2024", analisam a conexão à internet, serviços de streaming, sinal de streaming, rádio e outras ferramentas em todo o Brasil. Claro que há um lado naturalmente positivo na descoberta de que temos uma população, inclusive na faixa infantil, a cada dia mais conectada, considerando que há ferramentas educativas que funcionam com alto grau de eficiência. Portanto, não é questão de supervalorizar o viés negativo e, a partir disso, estabelecer restrições que inviabilizem o contato de nossas crianças com os avanços que são próprios do método digital.

A questão é que se trata de um ambiente no qual algum tipo de controle se faz necessário, evitando-se que gente inocente, até pela falta de uma vivência suficiente para levar às melhores escolhas, seja colocada ao alcance de práticas para as quais não está preparada. A mais evidente delas relacionada aos jogos online, com todos os males que trazem, a começar por estabelecer um quadro de vício com reflexos danosos, não raro, no próprio ambiente familiar.

É uma preocupação que precisa envolver pais, escolas, Estado e quem mais esteja interessado em garantir genuinamente que os avanços tecnológicos, necessários e bem vindos na maior parte dos casos, não apresentem como efeito colateral a desagregação de lares e a desestruturação de famílias. No caso específico, famílias cearenses.

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