terça-feira, 15 de julho de 2025

Trump, tarifas e o Vale do Silício – Pedro Doria

O Globo

É irônico que alguns setores mais atingidos pelo tarifaço de Trump sejam os mais ligados ao financiamento do bolsonarismo

A carta do presidente Donald Trump anunciando tarifas de 50% para as exportações brasileiras tornou-se o principal assunto no país faz uma semana. Claro — o impacto já se faz sentir em inúmeros setores. Vendas já acertadas vêm sendo canceladas. Muito de nossa conversa vem se concentrando no primeiro parágrafo da explicação que Trump oferece para a decisão: ou a Justiça suspende o julgamento de Jair Bolsonaro ou as sanções virão. Mas falamos pouco do segundo parágrafo — a queixa, também dirigida ao STF, sobre decisões contra as grandes plataformas digitais.

Em termos concretos, Trump ordenou a abertura de uma investigação pela Seção 301 da Lei do Comércio. Nesse artigo 301 estão expostos argumentos que podem levar os Estados Unidos a punir com tarifas um país que use “práticas comerciais irracionais ou discriminatórias”. Em tese, se uma nação trata os produtos americanos de forma distinta de equivalentes vindos de outros países, esse trecho da lei dá poderes de retaliação ao presidente da República. Nunca, desde a sanção da lei em 1974, a Seção 301 foi usada para contestar ordens judiciais de outro país. Em geral, é contra barreiras alfandegárias. Muito menos para determinar como um país deve tratar a circulação de informação, moderação de conteúdo ou o que o valha.

Nenhuma surpresa aí. Afinal, trata-se de Donald Trump. De que importa se uma decisão é inédita, incoerente ou mesmo legal? Não são esses os critérios adotados nos rompantes que saem do Salão Oval. É importante compreender que, não à toa, os principais CEOs da tecnologia estavam na posse do presidente americano. Entre eles há os que abraçaram o trumpismo com sinceridade, e há os que abraçaram por fingimento. Mas todos compreenderam que manter distância protocolar não era alternativa. Entenderam também outra coisa: Trump estava eleito, ocupa o cargo e, dados os seus impulsos, poderia ser um aliado para pressionar países que têm planos de regular o mercado digital. Isso inclui quase todas as democracias relevantes. Reino Unido e União Europeia, Austrália, Canadá, Índia e três quartos da América Latina.

Mas pressão é uma coisa. O confronto direto, com ameaças tão pesadas, é outra. E não é do interesse das empresas de tecnologia. O Brasil representa 10% do tráfego mundial do Instagram, 5% das buscas feitas no Google, 5% do uso do ChatGPT. O Google ganhou US$ 5 bilhões no Brasil em 2024. A Meta ganhou metade disso. Num cálculo da Reuters, meio bilhão de dólares dos US$ 10 bilhões que a OpenAI ganhou no ano passado veio daqui. O confronto direto nesse nível — ou afrouxa a regulação ou puniremos — pode forçar o Estado brasileiro a cercear a operação dessas companhias. Ou até bloqueá-las. O Brasil é o segundo mercado mais importante no Hemisfério Ocidental para todas. Só o mercado americano é maior.

Isso abre uma discussão mais ampla. O mundo se move na direção de regular plataformas digitais. O Brasil não está sozinho. Se os Estados Unidos decidirem punir todos os países que impuserem regras às redes, a consequência evidente será abrir espaço para empresas chinesas. Não é bom negócio para ninguém. Parece, aliás, tão absurdo que o mais provável é ser mais uma bravata trumpista.

Por enquanto, o consumidor americano será penalizado. Seu café, seu suco de laranja, seus sapatos e até seus carros ficarão mais caros. Para o brasileiro, o peixe e a picanha serão mais baratos. Mas é irônico que alguns dos setores econômicos mais atingidos sejam, justamente, os mais ligados ao financiamento do bolsonarismo. Ontem, em entrevista à Folha de S.Paulo, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro sacou do bolso a possibilidade de tirar o Brasil do sistema swift, que rege as transações internacionais. Falou em bloquear os bens de empresários brasileiros e punir empresas americanas que operem aqui. Como ocorreu com a Rússia quando invadiu a Ucrânia.

A ameaça do filho Zero Três é tão absurda que parece rompante retórico. Mas absurda já é a carta de Trump, um sujeito intempestivo que, sabe-se lá, pode até tomar decisões assim. A família Bolsonaro ainda conta com financiadores importantes. Agora, decidiu tornar essa parte relevante de sua base refém. Ou o STF se ajoelha, ou o Brasil será punido. De sua parte, Trump faz o mesmo com o Vale do Silício. Ou a Justiça brasileira cede, ou ficará mais difícil para empresas americanas de tecnologia atuarem por aqui.

Eles cuidam dos problemas deles. Nós, do nosso. Alguém acreditou no papo de “Brasil acima de tudo”? Era mentira.

 

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