O Globo
É irônico que alguns setores mais atingidos
pelo tarifaço de Trump sejam os mais ligados ao financiamento do bolsonarismo
A carta do presidente Donald Trump anunciando tarifas de 50% para as exportações brasileiras tornou-se o principal assunto no país faz uma semana. Claro — o impacto já se faz sentir em inúmeros setores. Vendas já acertadas vêm sendo canceladas. Muito de nossa conversa vem se concentrando no primeiro parágrafo da explicação que Trump oferece para a decisão: ou a Justiça suspende o julgamento de Jair Bolsonaro ou as sanções virão. Mas falamos pouco do segundo parágrafo — a queixa, também dirigida ao STF, sobre decisões contra as grandes plataformas digitais.
Em termos concretos, Trump ordenou a abertura
de uma investigação pela Seção 301 da Lei do Comércio. Nesse artigo 301 estão
expostos argumentos que podem levar os Estados Unidos a
punir com tarifas um país que use “práticas comerciais irracionais ou
discriminatórias”. Em tese, se uma nação trata os produtos americanos de forma
distinta de equivalentes vindos de outros países, esse trecho da lei dá poderes
de retaliação ao presidente da República. Nunca, desde a sanção da lei em 1974,
a Seção 301 foi usada para contestar ordens judiciais de outro país. Em geral,
é contra barreiras alfandegárias. Muito menos para determinar como um país deve
tratar a circulação de informação, moderação de conteúdo ou o que o valha.
Nenhuma surpresa aí. Afinal, trata-se de
Donald Trump. De que importa se uma decisão é inédita, incoerente ou mesmo
legal? Não são esses os critérios adotados nos rompantes que saem do Salão
Oval. É importante compreender que, não à toa, os principais CEOs da tecnologia
estavam na posse do presidente americano. Entre eles há os que abraçaram o
trumpismo com sinceridade, e há os que abraçaram por fingimento. Mas todos
compreenderam que manter distância protocolar não era alternativa. Entenderam
também outra coisa: Trump estava eleito, ocupa o cargo e, dados os seus
impulsos, poderia ser um aliado para pressionar países que têm planos de
regular o mercado digital. Isso inclui quase todas as democracias relevantes.
Reino Unido e União Europeia, Austrália, Canadá, Índia e três quartos da
América Latina.
Mas pressão é uma coisa. O confronto direto,
com ameaças tão pesadas, é outra. E não é do interesse das empresas de
tecnologia. O Brasil representa 10% do tráfego mundial do Instagram, 5% das
buscas feitas no Google, 5% do uso
do ChatGPT. O Google ganhou US$ 5 bilhões no Brasil em 2024. A Meta ganhou
metade disso. Num cálculo da Reuters, meio bilhão de dólares dos US$ 10 bilhões
que a OpenAI ganhou no ano passado veio daqui. O confronto direto nesse nível —
ou afrouxa a regulação ou puniremos — pode forçar o Estado brasileiro a cercear
a operação dessas companhias. Ou até bloqueá-las. O Brasil é o segundo mercado
mais importante no Hemisfério Ocidental para todas. Só o mercado americano é
maior.
Isso abre uma discussão mais ampla. O mundo
se move na direção de regular plataformas digitais. O Brasil não está sozinho.
Se os Estados Unidos decidirem punir todos os países que impuserem regras às
redes, a consequência evidente será abrir espaço para empresas chinesas. Não é
bom negócio para ninguém. Parece, aliás, tão absurdo que o mais provável é ser
mais uma bravata trumpista.
Por enquanto, o consumidor americano será
penalizado. Seu café, seu suco de laranja, seus sapatos e até seus carros
ficarão mais caros. Para o brasileiro, o peixe e a picanha serão mais baratos.
Mas é irônico que alguns dos setores econômicos mais atingidos sejam,
justamente, os mais ligados ao financiamento do bolsonarismo. Ontem, em
entrevista à Folha de S.Paulo, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro
sacou do bolso a possibilidade de tirar o Brasil do sistema swift, que rege as
transações internacionais. Falou em bloquear os bens de empresários brasileiros
e punir empresas americanas que operem aqui. Como ocorreu com a Rússia quando
invadiu a Ucrânia.
A ameaça do filho Zero Três é tão absurda que
parece rompante retórico. Mas absurda já é a carta de Trump, um sujeito
intempestivo que, sabe-se lá, pode até tomar decisões assim. A família
Bolsonaro ainda conta com financiadores importantes. Agora, decidiu tornar essa
parte relevante de sua base refém. Ou o STF se ajoelha, ou o Brasil será
punido. De sua parte, Trump faz o mesmo com o Vale do Silício. Ou a Justiça
brasileira cede, ou ficará mais difícil para empresas americanas de tecnologia
atuarem por aqui.
Eles cuidam dos problemas deles. Nós, do
nosso. Alguém acreditou no papo de “Brasil acima de tudo”? Era mentira.
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