terça-feira, 26 de agosto de 2025

A moderna Doutrina Monroe, por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo

O intervencionismo norte-americano na América Latina começa a submeter os países a pressões que violam sua soberania

Está em execução a estratégia do governo Trump para a América Latina anunciada, em termos genéricos, pelo secretário de Defesa como o “quintal” dos EUA, onde “os países deverão optar entre os EUA e a China”, como afirmou o presidente norte-americano.

Ao lado da firme oposição aos governos de esquerda no hemisfério (Cuba, Venezuela, Nicarágua, Colômbia, Chile e Brasil), o Departamento de Estado, chefiado por Marco Rubio, senador da Flórida, ultraconservador e primeira geração de cubanos que saíram de Cuba, está tomando medidas concretas para fortalecer os governos de direita (El Salvador, Paraguai, Argentina e agora a Bolívia) e tentar reverter a tendência pendular de governos de esquerda na região para influir nas eleições para eleger governos alinhados às políticas de Washington, “para construir um hemisfério mais seguro, mais forte e mais próspero”.

As medidas tomadas até aqui ressuscitam a Doutrina Monroe de 1823, pela qual se afirmava o princípio da “América para os americanos”, afastando a influência da Europa, e o Corolário Roosevelt (1904), autorizando intervenção militar para a defesa das empresas americanas.

Atualizada, a Doutrina Monroe moderna busca afastar os países da região da crescente presença da China, hoje o principal parceiro comercial da quase totalidade dos países da região, e defender as empresas americanas.

A primeira intervenção foi no Panamá, forçando o governo a pôr um fim nos contratos com empresas chinesas, a fim de controlar o fluxo de transporte por essa via estratégica para os EUA. Mais recentemente, o Departamento de Estado assinou acordos com o Paraguai para criar uma base na fronteira com o Brasil contra o Hezbollah integrada por agentes do FBI. Na semana passada, com o ministro do Exterior paraguaio, foi assinado, em Washington, um acordo para o Paraguai acolher asilados de outros países residentes nos EUA, no contexto de ampla parceria estratégica em segurança, diplomacia e economia, em especial no combate ao crime transnacional, na estabilidade regional, na energia, na mineração e na tecnologia. Nesse contexto, chama a atenção declarações de Marco Rubio sobre a possibilidade de intervenção de Washington na utilização da energia da binacional Itaipu para a instalação de data centers, em função do excedente de energia e seu baixo custo. Em outra iniciativa, na semana passada, o comando do Sul, na Flórida, enviou 4 mil marinheiros e fuzileiros navais para o combate ao tráfico de drogas, ameaça à segurança nacional, para as costas da Venezuela, “governado por um presidente ilegítimo e por um cartel de narcoterroristas”. A Casa Branca afirmou que “Trump mantém todas as opções abertas”, inclusive intervenção armada nos países para atingir os traficantes. Apoio a eventual movimento de parte do Exército venezuelano contra Maduro e proteção à Guiana, com eleição em 1.º de setembro, podem ser outros objetivos dos EUA.

O Brasil parece ser um dos alvos preferidos de Washington, desde a imposição das tarifas mais elevadas (50%), ao lado da

Índia, para a exportação de produtos para os EUA, com a escalada de sanções políticas sobre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de funcionários do Ministério da Saúde, por terem coordenado a vinda de médicos cubanos ao País, e de relatório crítico sobre direitos humanos no Brasil. Em uma situação de impasse nas negociações comerciais, é possível prever novas ações depois do julgamento de Bolsonaro em setembro, com inaceitável interferência em assuntos internos que atentam contra a soberania nacional. A resistência do governo brasileiro a essas intervenções, contrárias à evolução normal das relações entre os dois países e a tentativa de formação de uma frente de oposição às medidas protecionistas norte-americanas poderão criar uma situação de graves consequências diplomáticas entre os dois países. A possível intervenção militar na Venezuela entrou na pauta de Lula nas conversas com o presidente do Equador e com os chefes de Estado na reunião do Tratado de Cooperação Amazônica, realizada em Bogotá.

Não pode ser afastada a possibilidade de o Brasil estar sendo usado como um exemplo para os países que ousarem se opor à nova versão da Doutrina Monroe. Além de Itaipu, como base de colonização tecnológica e talvez a Amazônia, cujo desmatamento está sendo objeto de investigação no contexto da seção 301 da lei de comércio americana, pelos recursos minerais e pelo maior reservatório de água do planeta, poderão ser, no futuro, os próximos alvos da agressiva política imperial de Washington. A decisão do STF sobre a aplicação da Lei Magnitsky no Brasil, com potencial de forte impacto sobre os bancos e sinais de distanciamento dos EUA na área da Defesa, com o cancelamento da Conferência Espacial das Américas, organizada pela Força Aérea, e da Operação Formosa, principal exercício da Marinha, são os últimos exemplos da escalada entre os dois países.

O intervencionismo do governo norte-americano na América Latina começa a submeter os países da região a pressões que violam a soberania ou demandam subordinação disfarçada de cooperação, além de impor ameaças de intervenção militar, sob pretexto de combate aos “narcoterroristas”.

Essas movimentações de Washington apresentam-se como o maior desafio da política externa brasileira nas últimas décadas. 

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