O Estado de S. Paulo
O intervencionismo norte-americano na América Latina começa a submeter os países a pressões que violam sua soberania
Está em execução a estratégia do governo
Trump para a América Latina anunciada, em termos genéricos, pelo secretário de
Defesa como o “quintal” dos EUA, onde “os países deverão optar entre os EUA e a
China”, como afirmou o presidente norte-americano.
Ao lado da firme oposição aos governos de esquerda no hemisfério (Cuba, Venezuela, Nicarágua, Colômbia, Chile e Brasil), o Departamento de Estado, chefiado por Marco Rubio, senador da Flórida, ultraconservador e primeira geração de cubanos que saíram de Cuba, está tomando medidas concretas para fortalecer os governos de direita (El Salvador, Paraguai, Argentina e agora a Bolívia) e tentar reverter a tendência pendular de governos de esquerda na região para influir nas eleições para eleger governos alinhados às políticas de Washington, “para construir um hemisfério mais seguro, mais forte e mais próspero”.
As medidas tomadas até aqui ressuscitam a
Doutrina Monroe de 1823, pela qual se afirmava o princípio da “América para os
americanos”, afastando a influência da Europa, e o Corolário Roosevelt (1904),
autorizando intervenção militar para a defesa das empresas americanas.
Atualizada, a Doutrina Monroe moderna busca
afastar os países da região da crescente presença da China, hoje o principal
parceiro comercial da quase totalidade dos países da região, e defender as
empresas americanas.
A primeira intervenção foi no Panamá,
forçando o governo a pôr um fim nos contratos com empresas chinesas, a fim de
controlar o fluxo de transporte por essa via estratégica para os EUA. Mais
recentemente, o Departamento de Estado assinou acordos com o Paraguai para
criar uma base na fronteira com o Brasil contra o Hezbollah integrada por
agentes do FBI. Na semana passada, com o ministro do Exterior paraguaio, foi
assinado, em Washington, um acordo para o Paraguai acolher asilados de outros
países residentes nos EUA, no contexto de ampla parceria estratégica em
segurança, diplomacia e economia, em especial no combate ao crime
transnacional, na estabilidade regional, na energia, na mineração e na
tecnologia. Nesse contexto, chama a atenção declarações de Marco Rubio sobre a
possibilidade de intervenção de Washington na utilização da energia da
binacional Itaipu para a instalação de data centers, em função do excedente de
energia e seu baixo custo. Em outra iniciativa, na semana passada, o comando do
Sul, na Flórida, enviou 4 mil marinheiros e fuzileiros navais para o combate ao
tráfico de drogas, ameaça à segurança nacional, para as costas da Venezuela,
“governado por um presidente ilegítimo e por um cartel de narcoterroristas”. A
Casa Branca afirmou que “Trump mantém todas as opções abertas”, inclusive
intervenção armada nos países para atingir os traficantes. Apoio a eventual
movimento de parte do Exército venezuelano contra Maduro e proteção à Guiana,
com eleição em 1.º de setembro, podem ser outros objetivos dos EUA.
O Brasil parece ser um dos alvos preferidos
de Washington, desde a imposição das tarifas mais elevadas (50%), ao lado da
Índia, para a exportação de produtos para os
EUA, com a escalada de sanções políticas sobre o ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) e de funcionários do Ministério da Saúde, por terem coordenado a
vinda de médicos cubanos ao País, e de relatório crítico sobre direitos humanos
no Brasil. Em uma situação de impasse nas negociações comerciais, é possível prever
novas ações depois do julgamento de Bolsonaro em setembro, com inaceitável
interferência em assuntos internos que atentam contra a soberania nacional. A
resistência do governo brasileiro a essas intervenções, contrárias à evolução
normal das relações entre os dois países e a tentativa de formação de uma
frente de oposição às medidas protecionistas norte-americanas poderão criar uma
situação de graves consequências diplomáticas entre os dois países. A possível
intervenção militar na Venezuela entrou na pauta de Lula nas conversas com o
presidente do Equador e com os chefes de Estado na reunião do Tratado de
Cooperação Amazônica, realizada em Bogotá.
Não pode ser afastada a possibilidade de o
Brasil estar sendo usado como um exemplo para os países que ousarem se opor à
nova versão da Doutrina Monroe. Além de Itaipu, como base de colonização
tecnológica e talvez a Amazônia, cujo desmatamento está sendo objeto de
investigação no contexto da seção 301 da lei de comércio americana, pelos
recursos minerais e pelo maior reservatório de água do planeta, poderão ser, no
futuro, os próximos alvos da agressiva política imperial de Washington. A
decisão do STF sobre a aplicação da Lei Magnitsky no Brasil, com potencial de
forte impacto sobre os bancos e sinais de distanciamento dos EUA na área da
Defesa, com o cancelamento da Conferência Espacial das Américas, organizada
pela Força Aérea, e da Operação Formosa, principal exercício da Marinha, são os
últimos exemplos da escalada entre os dois países.
O intervencionismo do governo norte-americano
na América Latina começa a submeter os países da região a pressões que violam a
soberania ou demandam subordinação disfarçada de cooperação, além de impor
ameaças de intervenção militar, sob pretexto de combate aos “narcoterroristas”.
Essas movimentações de Washington apresentam-se como o maior desafio da política externa brasileira nas últimas décadas.
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