terça-feira, 26 de agosto de 2025

A reprodução da desigualdade, por Jorge J. Okubaro

O Estado de S. Paulo

Estamos empobrecendo em relação ao resto do mundo e tendo a renda mais concentrada. É uma combinação inquietante

De tão persistentes, nossos dilemas sociais, econômicos e políticos não mais enternecem parte dos brasileiros, conformada com situações que, embora anormais, passou a considerar naturais. Mas certas questões deveriam nos comover.

Coautor, com Fillipi Nascimento, do livro A Loteria do Nascimento (Editora Jandaíra), lançado na semana passada, o economista e pesquisador do Insper Michael França concluiu, por exemplo, que, ao contrário da ideia predominante de que as desigualdades resultam basicamente de um sistema educacional de baixa qualidade, as condições de nascimento afetam mais a vida das pessoas.

Educação de qualidade é essencial para melhorar a vida das pessoas e para o avanço de uma sociedade. E sua carência estimula a perpetuação de graves problemas. Mas a desigualdade social (e sua reprodução ao longo do tempo) decorre também de fatores como o apontado no estudo do pesquisador do Insper. Estrutura familiar, herança, rede de contatos e formação em instituições renomadas favorecem a carreira profissional de uma parte das pessoas. Já os filhos de famílias mais pobres enfrentam desvantagens na carreira, como falta de condições financeiras para recusar emprego ruim, escassez de contatos e referências no mercado de trabalho ou impossibilidade de investir em educação e treinamento adicionais. “Existe a ideia de que a desigualdade existe porque não há educação de qualidade”, disse Michael França à BBC News Brasil, “e não porque o sistema tributário é injusto, ou porque o governo é mais benevolente com os ricos, ou porque valores culturais, cor ou gênero favorecem determinados grupos”.

Tão acostumados nos tornamos com a histórica concentração de renda que nem percebemos como esse processo se estendeu e se consolidou. Quanto mais rico, mais cresce a riqueza. Num país que detém alguns dos piores índices mundiais de distribuição de renda, talvez soe como irônica perversidade o fato de que também na exclusiva faixa do 1% mais rico a riqueza se concentra.

Entre 2017 e 2023, a renda média das pessoas dessa faixa cresceu 4,4% em valores reais (descontada a inflação), muito mais do que o aumento de 1,4% da renda média das famílias brasileiras, de acordo com estudo do economista Sérgio Gobetti, em parceria com Priscila Kaiser Monteiro e Frederico Nascimento Dutra. Baseado em dados das declarações entregues à Receita Federal, o estudo mostra a persistência do processo de concentração de renda no País. A parcela da renda disponível bruta total do País apropriada por 1% dos mais ricos passou de 20,4% para 24,3%. Claro que, para os declarantes fora dessa faixa (99% do total), a fatia diminuiu de 79,6% para 75,7%.

Subdividindo a faixa do 1% mais rico em outras faixas, o estudo constatou que a renda do 0,1% mais rico cresceu 6,9%, bem mais do que a dos demais participantes dos muito ricos e, sobretudo, a da imensa maioria das famílias. Por isso, a fatia da riqueza nacional apropriada pelo 0,1% mais rico entre os declarantes do Imposto de Renda (cerca de 160 mil pessoas) passou de 9,1% para 12,5% entre 2017 e 2023.

Há uma característica da renda dos mais ricos que a torna menos sujeita à tributação que incide sobre o rendimento dos demais brasileiros, o que remete à injustiça tributária citada anteriormente por Michael França. A renda da maioria dos contribuintes é fruto do trabalho, e tributada no momento do pagamento. Nas faixas de rendimento mais altas, há muitos profissionais liberais que recorrem à criação de empresas sobre as quais a tributação é menor. E boa parte dos rendimentos é decorrente de lucros e dividendos, igualmente sujeitos a tributação menos onerosa.

Além de incidir desigualmente para diferentes faixas de renda, a tributação é desigual também na concessão de benefícios. Estudo divulgado há dias pelo Ministério do Planejamento e Orçamento mostra que, em 2024, o total de subsídios da União somou R$ 678 bilhões, o que equivale a 5,78% do Produto Interno Bruto (PIB). Desse valor, a maior parte é formada pelos chamados gastos tributários, que alcançaram R$ 564 bilhões, ou 83,1% do total. Nesse item estão incluídos os descontos e as isenções de tributos. Aí estão benefícios justificáveis, mas há também outros que deveriam ser temporários, no entanto, perduram há anos. São benefícios que precisam ser revistos. Também precisa ser revisto o sistema de tributação das rendas mais altas, sobre as quais incidem menos impostos do que os recolhidos pelos que ganham menos. Em nome da progressividade tributária, os que mais ganham deveriam recolher proporcionalmente mais.

Estatísticas recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) deixam uma advertência para os brasileiros: com a lenta evolução de sua renda per capita, o País está se aproximando da metade mais pobre do mundo. Estamos empobrecendo em relação ao resto do mundo e tendo a renda mais concentrada. É uma combinação inquietante. •

 

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