segunda-feira, 18 de agosto de 2025

As Ucrânias de Putin, Trump e Lula, por Demétrio Magnoli

O Globo

Pensamentos pouco ou nada esclarecem sobre o país, mas iluminam com luz clara a visão de mundo dos três personagens

Diga-me o que é a Ucrânia e te direi quem és. Putin, o invasor; Trump, o aliado traidor; e Lula, o espectador interessado, têm respostas radicalmente diferentes à indagação. Elas pouco ou nada esclarecem sobre a Ucrânia, mas iluminam com luz clara a visão de mundo dos três personagens.

Num discurso televisionado, dias antes da invasão de fevereiro de 2022, o autocrata grão-russo ofereceu seu diagnóstico:

— A Ucrânia não é, apenas, para nós, um país vizinho. É uma parte inalienável de nossa própria história, cultura e espaço espiritual.

O vizinho não seria uma nação legítima, mas uma região da Rússia tornada autônoma por um equívoco do bolchevique Lênin. Num ensaio histórico de julho de 2021, Putin afirmou que “russos e ucranianos são um único povo — uma totalidade” e concluiu pela necessidade de restaurar a “nação triune” constituída por Rússia, Ucrânia e Belarus.

O imperialismo do chefe do Kremlin deita raízes numa visão quase mística da Rússia, cuja alma foi forjada nas profundezas da História e polida pelo cristianismo ortodoxo. Refazer a Grande Rússia desvirtuada pelos comunistas e fragmentada pelo Ocidente sem Deus — eis seu argumento para a guerra de conquista deflagrada na Ucrânia.

Das névoas de uma história imaginada ao pragmatismo primitivo do empreendedor inescrupuloso. Trump não enxerga a Ucrânia como nação soberana ou país aliado, mas como patrimônio imobiliário. Às vésperas de sua reunião de cúpula com Putin, no Alasca, sugeriu que a base de um acordo de paz seriam “intercâmbios de terras”. Como a Ucrânia não controla ou reivindica áreas russas, a frase só poderia ser interpretada como a troca de territórios ucranianos sob poder da Ucrânia por territórios ucranianos ocupados pela Rússia.

Uma Munique no Alasca? Na Munique original, em 1938, britânicos e franceses entregaram os Sudetos tchecos a Hitler. No Alasca, Estados Unidos e Rússia reuniram-se sem a presença da Ucrânia para discutir as fronteiras ucranianas. O princípio de que fronteiras não podem ser mudadas pela força não passou pela mente de Trump. Mas, na linha dos “intercâmbios de terras”, ele cogitou em voz alta recuperar a “propriedade à beira-mar” perdida pela Ucrânia — as províncias de Kherson e Zaporijia, parcialmente ocupadas pelas forças russas. Negócios imobiliários.

Lula não se entrega a misticismos históricos nem decifra as guerras pela régua do mercado de imóveis. Seu paradigma imutável é um antiamericanismo ancorado na pobre tradição intelectual da esquerda latino-americana. Sob as lentes do presidente brasileiro, a Ucrânia é uma peça no tabuleiro do “imperialismo americano”.

Como Putin e Trump, Lula não enxerga a Ucrânia como país detentor das mesmas prerrogativas dos demais, aí incluído o direito de escolher suas próprias alianças políticas, econômicas e militares. No seu juízo, expresso em entrevista de maio de 2022, a “razão para a invasão da Ucrânia é a Otan”. Sua solução:

— Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter dito: “A Ucrânia não vai entrar na Otan”. Estaria resolvido.

Falso, claro, pois a hipotética negativa não restauraria a “nação triune” almejada por Putin.

A entrada na Otan era, até a invasão, um sonho ucraniano distante. Mas o sonho decorre de motivos similares aos dos países da antiga Cortina de Ferro que ingressaram na aliança militar entre 1999 e 2020: o temor do imperialismo russo. O Império Russo subjugou os países bálticos, a Ucrânia, Belarus e Moldávia. A União Soviética estendeu sua esfera de influência ao conjunto da Europa do Leste e, para aplastar movimentos reformistas, invadiu a Hungria e a Tchecoslováquia. Daí que, desde o colapso da União Soviética, as nações dessa parte da Europa concluíram que só a Otan poderia garantir sua independência.

Lula, porém, é incapaz de entender isso, pois estudou numa escola ideológica pervertida que afirma só existir um imperialismo: dos Estados Unidos. Sua mal disfarçada solidariedade a Putin é a consequência lógica da caricatura binária em que acredita.

Putin, Trump e Lula produzem autorretratos quando falam sobre a Ucrânia. As imagens não são bonitas.

 

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