O Globo
Pensamentos pouco ou nada esclarecem sobre o
país, mas iluminam com luz clara a visão de mundo dos três personagens
Diga-me o que é a Ucrânia e te
direi quem és. Putin, o invasor; Trump, o aliado traidor; e Lula,
o espectador interessado, têm respostas radicalmente diferentes à indagação.
Elas pouco ou nada esclarecem sobre a Ucrânia, mas iluminam com luz clara a
visão de mundo dos três personagens.
Num discurso televisionado, dias antes da
invasão de fevereiro de 2022, o autocrata grão-russo ofereceu seu diagnóstico:
— A Ucrânia não é, apenas, para nós, um país vizinho. É uma parte inalienável de nossa própria história, cultura e espaço espiritual.
O vizinho não seria uma nação legítima, mas
uma região da Rússia tornada
autônoma por um equívoco do bolchevique Lênin. Num ensaio histórico de julho de
2021, Putin afirmou que “russos e ucranianos são um único povo — uma
totalidade” e concluiu pela necessidade de restaurar a “nação triune”
constituída por Rússia, Ucrânia e Belarus.
O imperialismo do chefe do Kremlin deita
raízes numa visão quase mística da Rússia, cuja alma foi forjada nas
profundezas da História e polida pelo cristianismo ortodoxo. Refazer a Grande
Rússia desvirtuada pelos comunistas e fragmentada pelo Ocidente sem Deus — eis
seu argumento para a guerra de conquista deflagrada na Ucrânia.
Das névoas de uma história imaginada ao
pragmatismo primitivo do empreendedor inescrupuloso. Trump não enxerga a
Ucrânia como nação soberana ou país aliado, mas como patrimônio imobiliário. Às
vésperas de sua reunião de cúpula com Putin, no Alasca, sugeriu que a base de
um acordo de paz seriam “intercâmbios de terras”. Como a Ucrânia não controla
ou reivindica áreas russas, a frase só poderia ser interpretada como a troca de
territórios ucranianos sob poder da Ucrânia por territórios ucranianos ocupados
pela Rússia.
Uma Munique no
Alasca? Na Munique original, em 1938, britânicos e franceses entregaram os
Sudetos tchecos a Hitler. No Alasca, Estados Unidos e
Rússia reuniram-se sem a presença da Ucrânia para discutir as fronteiras
ucranianas. O princípio de que fronteiras não podem ser mudadas pela força não
passou pela mente de Trump. Mas, na linha dos “intercâmbios de terras”, ele
cogitou em voz alta recuperar a “propriedade à beira-mar” perdida pela Ucrânia
— as províncias de Kherson e Zaporijia, parcialmente ocupadas pelas forças
russas. Negócios imobiliários.
Lula não se entrega a misticismos históricos
nem decifra as guerras pela régua do mercado de imóveis. Seu paradigma imutável
é um antiamericanismo ancorado na pobre tradição intelectual da esquerda
latino-americana. Sob as lentes do presidente brasileiro, a Ucrânia é uma peça
no tabuleiro do “imperialismo americano”.
Como Putin e Trump, Lula não enxerga a
Ucrânia como país detentor das mesmas prerrogativas dos demais, aí incluído o
direito de escolher suas próprias alianças políticas, econômicas e militares.
No seu juízo, expresso em entrevista de maio de 2022, a “razão para a invasão
da Ucrânia é a Otan”.
Sua solução:
— Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter
dito: “A Ucrânia não vai entrar na Otan”. Estaria resolvido.
Falso, claro, pois a hipotética negativa não
restauraria a “nação triune” almejada por Putin.
A entrada na Otan era, até a invasão, um
sonho ucraniano distante. Mas o sonho decorre de motivos similares aos dos
países da antiga Cortina de Ferro que ingressaram na aliança militar entre 1999
e 2020: o temor do imperialismo russo. O Império Russo subjugou os países
bálticos, a Ucrânia, Belarus e Moldávia. A União Soviética estendeu sua esfera
de influência ao conjunto da Europa do Leste e, para aplastar movimentos
reformistas, invadiu a Hungria e a
Tchecoslováquia. Daí que, desde o colapso da União Soviética, as nações dessa
parte da Europa concluíram que só a Otan poderia garantir sua independência.
Lula, porém, é incapaz de entender isso, pois
estudou numa escola ideológica pervertida que afirma só existir um
imperialismo: dos Estados Unidos. Sua mal disfarçada solidariedade a Putin é a
consequência lógica da caricatura binária em que acredita.
Putin, Trump e Lula produzem autorretratos
quando falam sobre a Ucrânia. As imagens não são bonitas.
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