segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Lei Rouanet para as favelas é bem-vinda, por Preto Zezé

O Globo

Cultura não pertence a meia dúzia de CEPs de elite. Está em becos, vielas e quebradas que sustentam a identidade do país

Durante mais de 30 anos, a Lei Rouanet foi tratada como território exclusivo de grandes produtoras, centros culturais de luxo e artistas com acesso aos bastidores de Brasília e multinacionais. Enquanto isso, nas favelas, a cultura — viva, pulsante e diversa — seguia sem microfone, sem holofotes e, principalmente, sem orçamento. A regra era clara: os recursos se concentravam onde já havia estrutura e visibilidade. O resto, que se virasse.

O Programa Rouanet nas Favelas rompe essa lógica. Pela primeira vez, o mesmo instrumento usado para financiar musicais milionários, exposições de alto custo e festivais da elite cultural irrigará os territórios onde a arte nunca parou de nascer, mas sempre foi ignorada. Não se trata de favor, e sim de reparação histórica.

A proposta é simples e poderosa: destinar R$ 5 milhões, patrocinados pela Vale, exclusivamente para projetos culturais em cinco cidades — Belém (PA)São Luís (MA)Fortaleza (CE)Salvador (BA) e Goiânia (GO) — e regiões metropolitanas. No mínimo, 25 projetos serão selecionados, cada um com até R$ 200 mil e R$ 1 milhão garantido por cidade. O edital é aberto a pessoas físicas ou jurídicas, com ou sem fins lucrativos, que vivam ou atuem nos territórios de favela.

O alcance cultural é amplo: artes cênicas, música, artes visuais e literatura; expressões da cultura afro-brasileira, da cultura religiosa e da cultura urbana; o samba e o maracatu, o grafite e o slam, o funk e o hip-hop, as feiras literárias e o teatro de rua. Tudo o que, historicamente, constrói a alma brasileira, mas raramente recebeu o devido investimento.

O impacto é econômico e simbólico. Econômico, porque a cultura gera trabalho, ocupação produtiva e movimenta cadeias locais: artistas, produtores, costureiras, marceneiros, comunicadores, designers. Simbólico, porque quebra a lógica da exclusão, colocando a periferia no centro das decisões sobre para onde vai o dinheiro público incentivado.

A verdade é dura: durante décadas, a Lei Rouanet funcionou como filtro elitista. A maior parte dos recursos ficou no eixo Sul-Sudeste, alimentando a concentração de poder cultural e deixando Norte, Nordeste e Centro-Oeste como coadjuvantes. O Rouanet nas Favelas, amparado pelo Decreto 11.453/2023, é um contra-ataque direto a essa distorção.

E aqui entra um ponto central: a Central Única das Favelas (Cufa) foi parceira na elaboração e na estratégia desse programa. Por sua capacidade ímpar de articulação e presença em todos os territórios do país, a Cufa conectou as necessidades reais das comunidades com as exigências do poder público e as possibilidades de investimento do setor privado. Fomos parceiros sem receber nada, movidos pela convicção de que é preciso produzir políticas públicas perenes, duradouras, de Estado, com parcerias sólidas, em que sociedade, poder público e setor privado entreguem o que têm de melhor para quem nunca teve acesso — e mais precisa.

Essa atuação não é monopólio nem controle sobre movimentos, mas uma catapulta das potências locais, garantindo que cada projeto tenha identidade própria e força para crescer. Com mais de duas décadas de atuação e boas práticas testadas, criamos um modelo que pode inspirar novas políticas e investimentos de impacto fora do eixo concentrador de recursos.

O Rouanet nas Favelas é, no fundo, um aviso: a cultura não pertence a meia dúzia de CEPs de elite. Está em becos, vielas e quebradas que sustentam a identidade do país. Democratizar a cultura não é só dividir orçamento — é espalhar poder, oportunidades e capacidade de decisão para onde o Brasil pulsa mais forte.

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