O Globo
Cultura não pertence a meia dúzia de CEPs de
elite. Está em becos, vielas e quebradas que sustentam a identidade do país
Durante mais de 30 anos, a Lei Rouanet foi
tratada como território exclusivo de grandes produtoras, centros culturais de
luxo e artistas com acesso aos bastidores de Brasília e
multinacionais. Enquanto isso, nas favelas, a cultura — viva, pulsante e
diversa — seguia sem microfone, sem holofotes e, principalmente, sem orçamento.
A regra era clara: os recursos se concentravam onde já havia estrutura e
visibilidade. O resto, que se virasse.
O Programa Rouanet nas Favelas rompe essa lógica. Pela primeira vez, o mesmo instrumento usado para financiar musicais milionários, exposições de alto custo e festivais da elite cultural irrigará os territórios onde a arte nunca parou de nascer, mas sempre foi ignorada. Não se trata de favor, e sim de reparação histórica.
A proposta é simples e poderosa: destinar R$
5 milhões, patrocinados pela Vale, exclusivamente para projetos culturais em
cinco cidades — Belém (PA), São Luís (MA), Fortaleza (CE), Salvador (BA) e Goiânia (GO) —
e regiões metropolitanas. No mínimo, 25 projetos serão selecionados, cada um
com até R$ 200 mil e R$ 1 milhão garantido por cidade. O edital é aberto a
pessoas físicas ou jurídicas, com ou sem fins lucrativos, que vivam ou atuem
nos territórios de favela.
O alcance cultural é amplo: artes cênicas,
música, artes visuais e literatura; expressões da cultura afro-brasileira, da
cultura religiosa e da cultura urbana; o samba e o maracatu, o grafite e o
slam, o funk e o hip-hop, as feiras literárias e o teatro de rua. Tudo o que,
historicamente, constrói a alma brasileira, mas raramente recebeu o devido
investimento.
O impacto é econômico e simbólico. Econômico,
porque a cultura gera trabalho, ocupação produtiva e movimenta cadeias locais:
artistas, produtores, costureiras, marceneiros, comunicadores, designers.
Simbólico, porque quebra a lógica da exclusão, colocando a periferia no centro
das decisões sobre para onde vai o dinheiro público incentivado.
A verdade é dura: durante décadas, a Lei
Rouanet funcionou como filtro elitista. A maior parte dos recursos ficou no
eixo Sul-Sudeste, alimentando a concentração de poder cultural e deixando
Norte, Nordeste e Centro-Oeste como coadjuvantes. O Rouanet nas Favelas,
amparado pelo Decreto 11.453/2023, é um contra-ataque direto a essa distorção.
E aqui entra um ponto central: a Central
Única das Favelas (Cufa) foi parceira na elaboração e na estratégia desse
programa. Por sua capacidade ímpar de articulação e presença em todos os
territórios do país, a Cufa conectou as necessidades reais das comunidades com
as exigências do poder público e as possibilidades de investimento do setor
privado. Fomos parceiros sem receber nada, movidos pela convicção de que é
preciso produzir políticas públicas perenes, duradouras, de Estado, com
parcerias sólidas, em que sociedade, poder público e setor privado entreguem o
que têm de melhor para quem nunca teve acesso — e mais precisa.
Essa atuação não é monopólio nem controle
sobre movimentos, mas uma catapulta das potências locais, garantindo que cada
projeto tenha identidade própria e força para crescer. Com mais de duas décadas
de atuação e boas práticas testadas, criamos um modelo que pode inspirar novas
políticas e investimentos de impacto fora do eixo concentrador de recursos.
O Rouanet nas Favelas é, no fundo, um aviso:
a cultura não pertence a meia dúzia de CEPs de elite. Está em becos, vielas e
quebradas que sustentam a identidade do país. Democratizar a cultura não é só
dividir orçamento — é espalhar poder, oportunidades e capacidade de decisão
para onde o Brasil pulsa mais forte.
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