Folha de S. Paulo
Quando púlpito e palanque se confundem, o adversário vira inimigo da fé e o apoio político assume feição de devoção
A fé,
quando nasce de experiências autênticas, é espaço de encontro, escuta e defesa
da dignidade humana. Em sua melhor expressão, promove compaixão e convivência.
Mas, distorcida para servir a interesses de dominação, perde o sentido original
e se converte em barreira ao diálogo. Governos autoritários conhecem esse poder
e frequentemente envolvem seus projetos em símbolos e narrativas sagradas,
criando um verniz moral que intimida críticas.
A religião, como conjunto de crenças, ritos e valores, pode ser fonte de solidariedade ou de opressão. Sua força mobilizadora também a torna vulnerável à manipulação política travestida de legitimidade moral. A história mostra isso: Mussolini e Adolf Hitler contaram com líderes religiosos para reforçar discursos nacionalistas como missão divina; no apartheid, interpretações bíblicas seletivas sustentaram a segregação. O enredo é recorrente: constrói-se um inimigo interno, que pode ser o diferente, o inconformado ou o crítico, e eleva-se um líder a guardião de uma ordem sagrada.
No Brasil, essa lógica encontrou terreno
fértil com o avanço de correntes
evangélicas, sobretudo pentecostais e neopentecostais, mas também em movimentos
carismáticos católicos e outras tradições.
Quando púlpito e palanque se confundem, o
adversário vira inimigo da fé e o apoio político assume feição de devoção.
Sermões e programas religiosos se misturam a jingles e slogans, enfraquecendo a
neutralidade do Estado e a liberdade de crer ou não crer.
O fenômeno é global. Nos Estados Unidos, o
cristianismo nacionalista molda leis e tribunais e já serviu de base à Ku
Klux Klan. Na Hungria e na Rússia, narrativas religiosas reforçam
nacionalismos e leis restritivas. Em Israel, setores ultranacionalistas usam a
tradição judaica para legitimar a ocupação de territórios palestinos como
promessa divina. Na África e na Ásia, líderes muçulmanos, cristãos e hinduístas
fundem religião e política para sustentar governos ou restringir minorias. Na
América Latina, igrejas e religiões afrodescendentes são, em certos contextos,
atraídas para legitimar candidaturas, barganhar favores ou assegurar proteção
judicial.
Apesar disso, a religiosidade também carrega
potencial libertador. Igrejas, como as que abrigaram judeus durante a Segunda
Guerra Mundial ou acolheram perseguidos políticos na América Latina,
ofereceram refúgio contra a opressão. Proteger esse potencial exige educação
para distinguir fé genuína de manipulação e criar espaços de encontro entre
diferentes crenças para defender sociedades plurais.
A lição é clara: quando a religião se ajoelha
ao poder político, abdica de sua missão ética; quando o poder se apropria do
sagrado, renuncia à justiça. Garantir liberdade religiosa é impedir que ela se
torne arma contra os direitos que deveria proteger. Essa tarefa exige coragem,
lucidez e persistência para preservar o elo entre fé, democracia e justiça
social.
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