quarta-feira, 27 de agosto de 2025

O uso do sagrado como ferramenta do fascismo, por Luís Sabanay

Folha de S. Paulo

Quando púlpito e palanque se confundem, o adversário vira inimigo da fé e o apoio político assume feição de devoção

, quando nasce de experiências autênticas, é espaço de encontro, escuta e defesa da dignidade humana. Em sua melhor expressão, promove compaixão e convivência. Mas, distorcida para servir a interesses de dominação, perde o sentido original e se converte em barreira ao diálogo. Governos autoritários conhecem esse poder e frequentemente envolvem seus projetos em símbolos e narrativas sagradas, criando um verniz moral que intimida críticas.

religião, como conjunto de crenças, ritos e valores, pode ser fonte de solidariedade ou de opressão. Sua força mobilizadora também a torna vulnerável à manipulação política travestida de legitimidade moral. A história mostra isso: Mussolini Adolf Hitler contaram com líderes religiosos para reforçar discursos nacionalistas como missão divina; no apartheid, interpretações bíblicas seletivas sustentaram a segregação. O enredo é recorrente: constrói-se um inimigo interno, que pode ser o diferente, o inconformado ou o crítico, e eleva-se um líder a guardião de uma ordem sagrada.

No Brasil, essa lógica encontrou terreno fértil com o avanço de correntes evangélicas, sobretudo pentecostais e neopentecostais, mas também em movimentos carismáticos católicos e outras tradições.

Quando púlpito e palanque se confundem, o adversário vira inimigo da fé e o apoio político assume feição de devoção. Sermões e programas religiosos se misturam a jingles e slogans, enfraquecendo a neutralidade do Estado e a liberdade de crer ou não crer.

O fenômeno é global. Nos Estados Unidos, o cristianismo nacionalista molda leis e tribunais e já serviu de base à Ku Klux Klan. Na Hungria e na Rússia, narrativas religiosas reforçam nacionalismos e leis restritivas. Em Israel, setores ultranacionalistas usam a tradição judaica para legitimar a ocupação de territórios palestinos como promessa divina. Na África e na Ásia, líderes muçulmanos, cristãos e hinduístas fundem religião e política para sustentar governos ou restringir minorias. Na América Latina, igrejas e religiões afrodescendentes são, em certos contextos, atraídas para legitimar candidaturas, barganhar favores ou assegurar proteção judicial.

Apesar disso, a religiosidade também carrega potencial libertador. Igrejas, como as que abrigaram judeus durante a Segunda Guerra Mundial ou acolheram perseguidos políticos na América Latina, ofereceram refúgio contra a opressão. Proteger esse potencial exige educação para distinguir fé genuína de manipulação e criar espaços de encontro entre diferentes crenças para defender sociedades plurais.

A lição é clara: quando a religião se ajoelha ao poder político, abdica de sua missão ética; quando o poder se apropria do sagrado, renuncia à justiça. Garantir liberdade religiosa é impedir que ela se torne arma contra os direitos que deveria proteger. Essa tarefa exige coragem, lucidez e persistência para preservar o elo entre fé, democracia e justiça social.

 

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