domingo, 17 de agosto de 2025

Paradoxos autoritários, por Merval Pereira

O Globo

Em tese, Kissinger defendia os direitos humanos, mas na prática, e nas conversas com os ditadores, como Ernesto Geisel do Brasil e Augusto Pinochet do Chile, o secretário americano se solidarizava com eles

A luta a favor dos direitos humanos sempre foi um ponto relevante dos governos dos Estados Unidos, mas ao longo da história abarcou conceitos dúbios, pois aquele país coloca interesses geopolíticos e econômicos à frente dos direitos.

Mesmo equilibrando-se entre esses dois posicionamentos, os Estados Unidos conseguiram manter a aura de um regime democrático empenhado em defender os direitos humanos, apesar dos muitos excessos. Suas guerras sempre foram contra o comunismo, como no Vietnã, ou contra ditadores, como no caso do Iraque de Saddam Hussein. Os desvios de conduta, porém, levaram a que a população em muitos casos se voltasse contra os governos da ocasião, quase sempre por ataques aos direitos humanos dos inimigos, ou no tratamento com torturas nas prisões espalhadas pelo mundo, especialmente em Guantánamo, em Cuba.

O exemplo desse paradoxo é a relação cordial com a Arábia Saudita, uma ditadura sanguinária, mas que faz parte dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos por ser o maior produtor de petróleo mundial. Foi no governo de Jimmy Carter, nos anos 1976, que o relatório sobre os direitos humanos no mundo, que no momento acusa o governo brasileiro de abusá-los através do ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, começou a ser feito pelo Departamento de Estado. Carter era um político atípico, e empenhou-se realmente em uma campanha mundial de defesa dos direitos humanos. Acabou recebendo o Prêmio Nobel da Paz, embora não tenha sido reeleito.

Diante da ditadura militar brasileira, mesmo quando ela estava começando uma retirada estratégica rumo à redemocratização, Carter foi um crítico severo e, quando esteve no Brasil em visita oficial, recebeu políticos da oposição e personagens que se opunham à ditadura, como o Arcebispo de São Paulo d. Paulo Evaristo Arns. Nos anos anteriores, a política externa americana era dominada pelo pragmatismo de Henry Kissinger. Secretário de Estado de Richard Nixon, foi mantido no cargo depois de sua renúncia, no escândalo de Watergate, por seu vice e sucessor, Gerald Ford.

Em tese, Kissinger defendia os direitos humanos, mas na prática, e nas conversas com os ditadores, como Ernesto Geisel do Brasil e Augusto Pinochet do Chile, o secretário americano se solidarizava com eles. Esse quadro mudou substancialmente com a eleição de Carter. Sua política externa foi formulada pelo conselheiro de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, que pertencia à corrente idealista das relações internacionais, segundo a qual interesses devem ser calibrados por valores.

Carter pessoalmente também tinha essa visão da política externa, com forte ênfase nos direitos humanos, que lhe valeria em 2002 o Prêmio Nobel da Paz. Nesse clima político, o governo Carter, acusado de interferência nos negócios internos do Brasil pela ditadura militar, teve apoio interno da oposição no Congresso. Em retaliação, o governo militar cancelou acordos com os americanos e intensificou a relação com a Alemanha, com quem havia assinado um acordo nuclear.

Hoje, temos um governo nos Estados Unidos dos menos democráticos dos últimos anos, defendendo um ex-presidente brasileiro que é a favor da ditadura militar de 64, defende torturadores formalmente acusados, contra um governo de esquerda eleito democraticamente. Pode-se discordar do governo Lula, mas não há nada que indique que ele está no governo devido a uma corrupção do voto eletrônico, como alegam bolsonaristas. Também não há reincidência da tentativa de usar instituições governamentais para aparelhar ideologicamente o Estado.

Nos seus dois primeiros governos, Lula andou namorando atitudes autoritárias na direção da esquerda, algumas semelhantes à que Trump está tomando hoje na área cultural. A decisão recente de exigir que o Instituto Smithsonian se oriente pelos parâmetros culturais de um nacionalismo arcaico trumpista é semelhante ao que o governo Lula tentou por aqui, determinando que os apoios culturais financiados pelo governo deveriam seguir critérios determinados pelo ministério da Cultura. Também semelhante ao que o governo Bolsonaro fez na sua gestão, cortando os incentivos fiscais da Lei Rouanet, e interferindo nos temas artísticos e na cultura. São paradoxos que regem governos autoritários, de esquerda ou direita.


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