O Globo
Em tese, Kissinger defendia os direitos
humanos, mas na prática, e nas conversas com os ditadores, como Ernesto Geisel
do Brasil e Augusto Pinochet do Chile, o secretário americano se solidarizava
com eles
A luta a favor dos direitos humanos sempre
foi um ponto relevante dos governos dos Estados Unidos, mas ao longo da
história abarcou conceitos dúbios, pois aquele país coloca interesses
geopolíticos e econômicos à frente dos direitos.
Mesmo equilibrando-se entre esses dois posicionamentos, os Estados Unidos conseguiram manter a aura de um regime democrático empenhado em defender os direitos humanos, apesar dos muitos excessos. Suas guerras sempre foram contra o comunismo, como no Vietnã, ou contra ditadores, como no caso do Iraque de Saddam Hussein. Os desvios de conduta, porém, levaram a que a população em muitos casos se voltasse contra os governos da ocasião, quase sempre por ataques aos direitos humanos dos inimigos, ou no tratamento com torturas nas prisões espalhadas pelo mundo, especialmente em Guantánamo, em Cuba.
O exemplo desse paradoxo é a relação cordial
com a Arábia Saudita, uma ditadura sanguinária, mas que faz parte dos
interesses geopolíticos dos Estados Unidos por ser o maior produtor de petróleo
mundial. Foi no governo de Jimmy Carter, nos anos 1976, que o relatório sobre
os direitos humanos no mundo, que no momento acusa o governo brasileiro de
abusá-los através do ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Alexandre de
Moraes, começou a ser feito pelo Departamento de Estado. Carter era um político
atípico, e empenhou-se realmente em uma campanha mundial de defesa dos direitos
humanos. Acabou recebendo o Prêmio Nobel da Paz, embora não tenha sido
reeleito.
Diante da ditadura militar brasileira, mesmo
quando ela estava começando uma retirada estratégica rumo à redemocratização,
Carter foi um crítico severo e, quando esteve no Brasil em visita oficial,
recebeu políticos da oposição e personagens que se opunham à ditadura, como o
Arcebispo de São Paulo d. Paulo Evaristo Arns. Nos anos anteriores, a política
externa americana era dominada pelo pragmatismo de Henry Kissinger. Secretário
de Estado de Richard Nixon, foi mantido no cargo depois de sua renúncia, no
escândalo de Watergate, por seu vice e sucessor, Gerald Ford.
Em tese, Kissinger defendia os direitos
humanos, mas na prática, e nas conversas com os ditadores, como Ernesto Geisel
do Brasil e Augusto Pinochet do Chile, o secretário americano se solidarizava
com eles. Esse quadro mudou substancialmente com a eleição de Carter. Sua
política externa foi formulada pelo conselheiro de Segurança Nacional, Zbigniew
Brzezinski, que pertencia à corrente idealista das relações internacionais,
segundo a qual interesses devem ser calibrados por valores.
Carter pessoalmente também tinha essa visão
da política externa, com forte ênfase nos direitos humanos, que lhe valeria em
2002 o Prêmio Nobel da Paz. Nesse clima político, o governo Carter, acusado de
interferência nos negócios internos do Brasil pela ditadura militar, teve apoio
interno da oposição no Congresso. Em retaliação, o governo militar cancelou
acordos com os americanos e intensificou a relação com a Alemanha, com quem
havia assinado um acordo nuclear.
Hoje, temos um governo nos Estados Unidos dos
menos democráticos dos últimos anos, defendendo um ex-presidente brasileiro que
é a favor da ditadura militar de 64, defende torturadores formalmente acusados,
contra um governo de esquerda eleito democraticamente. Pode-se discordar do
governo Lula, mas não há nada que indique que ele está no governo devido a uma
corrupção do voto eletrônico, como alegam bolsonaristas. Também não há
reincidência da tentativa de usar instituições governamentais para aparelhar
ideologicamente o Estado.
Nos seus dois primeiros governos, Lula andou
namorando atitudes autoritárias na direção da esquerda, algumas semelhantes à
que Trump está tomando hoje na área cultural. A decisão recente de exigir que o
Instituto Smithsonian se oriente pelos parâmetros culturais de um nacionalismo
arcaico trumpista é semelhante ao que o governo Lula tentou por aqui,
determinando que os apoios culturais financiados pelo governo deveriam seguir
critérios determinados pelo ministério da Cultura. Também semelhante ao que o
governo Bolsonaro fez na sua gestão, cortando os incentivos fiscais da Lei
Rouanet, e interferindo nos temas artísticos e na cultura. São paradoxos que
regem governos autoritários, de esquerda ou direita.
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