O Globo
Meninos crescem confundindo
amor com controle, carinho com domínio, masculinidade com violência
Todo mundo se pergunta: “Que
mundo vamos deixar para nossos filhos?”. É uma inquietação justa diante das
guerras, das mudanças climáticas, da desigualdade. Mas talvez a pergunta mais
urgente seja:
— Que filhos estamos
deixando para o mundo?
Outro dia, fui confrontado
por essa dúvida dentro da minha própria casa. Meu filho, de 9 anos, foi chamado
para arrumar o quarto. Nada demais. Um gesto simples, uma responsabilidade
formativa. Mas ele resistiu. Disse que não precisava, porque “tem uma menina
que vem aqui fazer isso”.
Respirei fundo. Expliquei
que a moça não é sua empregada pessoal, que está ali para ajudar, não para
servir. Ele respondeu, sem perceber o peso da fala:
— Mas é o trabalho dela, né?
Ali, parei. Porque aquela
ideia — dentro de uma casa onde se discutem valores, justiça e respeito — não
veio de mim, nem da mãe. De onde veio, então?
Esse episódio me jogou de
volta para minha infância. Vivi violências que deixaram marcas. Fui forçado ao
trabalho doméstico e a responsabilidades de adulto ainda menino. Só depois,
cuidando de mim, entendi como traumas. Tive sorte — e sei que foi sorte — de
ser criado por mulheres sábias, que me ensinaram dignidade, resistência e
cuidado. Isso me salvou. Mas sou minoria. A maioria dos meninos das favelas
cresce com mães que são líderes solitárias dos lares. Muitos nem têm o nome do
pai na certidão. O peso do cotidiano impede uma educação emocional profunda. E
a cultura ainda impõe às mulheres o trabalho de cuidar — como se cuidar fosse
menos. Por isso, nós, homens, precisamos mudar nossa mentalidade sobre afeto e
a relação com a figura feminina.
Enquanto isso, lá fora, um
homem espancava uma mulher com 61 socos. Sessenta e um. As pessoas contaram. Eu
nem consegui assistir até o fim. Parecia um lutador de UFC com ódio. Mas era só
mais um homem que não aprendeu a ouvir “não”, a lidar com frustrações — nem a
respeitar mulheres.
Estamos formando homens
assim. Em casas que não percebem que falham. Em escolas que evitam discutir
gênero. Numa sociedade que silencia quando o agressor é “bom pai”, “muito
educado”. Mas que homem é esse que descarrega ódio no corpo de uma mulher? Que
menino ele foi? Que meninos temos em casa hoje?
A educação emocional dos
meninos virou um buraco cego. Ensinamos matemática, futebol, inglês. Mas não
ensinamos consentimento, igualdade, afeto sem posse. As meninas estão
avançando. Muitos meninos estão sendo deixados para trás — e crescem
confundindo amor com controle, carinho com domínio, masculinidade com
violência.
Temos responsabilidade —
homens e mulheres — de quebrar esse ciclo. De ensinar pelo exemplo, pela
escuta, pelo enfrentamento. De olhar para dentro de casa, como eu olhei naquele
dia, e entender: se meu filho pensa assim, a responsabilidade também é minha.
Não adianta culpar só o mundo. O mundo que queremos começa no quarto que ele se
recusa a arrumar.
Precisamos ensinar que não
há hierarquia entre seres humanos. Que não existe profissão menor, nem mulher
inferior. Precisamos reaprender que o valor da vida não está no poder de
mandar, mas na capacidade de cuidar.
Se não corrigirmos agora, os
meninos que hoje evitam arrumar o quarto serão os homens que, amanhã, se acham
no direito de agredir quem não se submete. E o mundo que tanto nos preocupamos
em deixar para os nossos filhos, talvez precise ser salvo deles.
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