segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Que filhos deixaremos? - Preto Zezé

O Globo

Meninos crescem confundindo amor com controle, carinho com domínio, masculinidade com violência

Todo mundo se pergunta: “Que mundo vamos deixar para nossos filhos?”. É uma inquietação justa diante das guerras, das mudanças climáticas, da desigualdade. Mas talvez a pergunta mais urgente seja:

— Que filhos estamos deixando para o mundo?

Outro dia, fui confrontado por essa dúvida dentro da minha própria casa. Meu filho, de 9 anos, foi chamado para arrumar o quarto. Nada demais. Um gesto simples, uma responsabilidade formativa. Mas ele resistiu. Disse que não precisava, porque “tem uma menina que vem aqui fazer isso”.

Respirei fundo. Expliquei que a moça não é sua empregada pessoal, que está ali para ajudar, não para servir. Ele respondeu, sem perceber o peso da fala:

— Mas é o trabalho dela, né?

Ali, parei. Porque aquela ideia — dentro de uma casa onde se discutem valores, justiça e respeito — não veio de mim, nem da mãe. De onde veio, então?

Esse episódio me jogou de volta para minha infância. Vivi violências que deixaram marcas. Fui forçado ao trabalho doméstico e a responsabilidades de adulto ainda menino. Só depois, cuidando de mim, entendi como traumas. Tive sorte — e sei que foi sorte — de ser criado por mulheres sábias, que me ensinaram dignidade, resistência e cuidado. Isso me salvou. Mas sou minoria. A maioria dos meninos das favelas cresce com mães que são líderes solitárias dos lares. Muitos nem têm o nome do pai na certidão. O peso do cotidiano impede uma educação emocional profunda. E a cultura ainda impõe às mulheres o trabalho de cuidar — como se cuidar fosse menos. Por isso, nós, homens, precisamos mudar nossa mentalidade sobre afeto e a relação com a figura feminina.

Enquanto isso, lá fora, um homem espancava uma mulher com 61 socos. Sessenta e um. As pessoas contaram. Eu nem consegui assistir até o fim. Parecia um lutador de UFC com ódio. Mas era só mais um homem que não aprendeu a ouvir “não”, a lidar com frustrações — nem a respeitar mulheres.

Estamos formando homens assim. Em casas que não percebem que falham. Em escolas que evitam discutir gênero. Numa sociedade que silencia quando o agressor é “bom pai”, “muito educado”. Mas que homem é esse que descarrega ódio no corpo de uma mulher? Que menino ele foi? Que meninos temos em casa hoje?

A educação emocional dos meninos virou um buraco cego. Ensinamos matemática, futebol, inglês. Mas não ensinamos consentimento, igualdade, afeto sem posse. As meninas estão avançando. Muitos meninos estão sendo deixados para trás — e crescem confundindo amor com controle, carinho com domínio, masculinidade com violência.

Temos responsabilidade — homens e mulheres — de quebrar esse ciclo. De ensinar pelo exemplo, pela escuta, pelo enfrentamento. De olhar para dentro de casa, como eu olhei naquele dia, e entender: se meu filho pensa assim, a responsabilidade também é minha. Não adianta culpar só o mundo. O mundo que queremos começa no quarto que ele se recusa a arrumar.

Precisamos ensinar que não há hierarquia entre seres humanos. Que não existe profissão menor, nem mulher inferior. Precisamos reaprender que o valor da vida não está no poder de mandar, mas na capacidade de cuidar.

Se não corrigirmos agora, os meninos que hoje evitam arrumar o quarto serão os homens que, amanhã, se acham no direito de agredir quem não se submete. E o mundo que tanto nos preocupamos em deixar para os nossos filhos, talvez precise ser salvo deles.

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