quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Um mundo em distopia, por Rodrigo Craveiro

Correio Braziliense

Vivemos uma espécie de distopia, uma inversão de valores que me causa estranheza e preocupação

Vivemos uma espécie de distopia, uma inversão de valores que me causa estranheza e preocupação. A maior potência do planeta — ou seria a China? — é governada por um narcisista. Alguém que, apesar de promover uma perseguição sem precedentes aos imigrantes ilegais e travar uma batalha ideológica contra as maiores universidades de seu país, faz uma autocampanha para ganhar o Nobel da Paz. Um chefe de Estado que se orgulha de ter acabado com a guerra entre Israel e Irã, mesmo que tenha mandado seus caças e bombardeios atacarem o território iraniano e ameaçado matar o aiatolá Ali Khamenei. Um presidente que impõe tarifas ao mundo para dobrar-lhe os joelhos e fazer valer seus interesses econômicos; que não se furta em se intrometer em assuntos de outras nações, em uma clara ingerência política e diplomática; e que demite a diretora do próprio Federal Reserve (Banco Central dos EUA), ainda que essa atribuição não seja sua. 

A distopia faz com que alguns normalizem o fato de um deputado federal licenciado fazer uma campanha deliberada contra a economia da própria nação, à sombra daquele mesmo líder americano, apenas para impedir que o Supremo Tribunal Federal honre seu papel de guardião da Constituição. Esse mesmo deputado, a partir dos Estados Unidos, tenta obter à marra uma anistia para o pai, acusado de golpismo, e ameaça jogar no desemprego e na sarjeta milhões de brasileiros. Como ele próprio disse, em um cenário de terra arrasada no Brasil, pelo menos se sentirá vingado. 

Depois da doutrinação ideológica, muitos brasileiros aceitam passivamente a matança na Faixa de Gaza como uma ação legítima contra o grupo terrorista Hamas. Não se comovem com as cenas de horror, os corpos empilhados, os seres humanos castigados pela fome e transformados em ossos e pele. A indiferença de muitos países lança a humanidade em uma letargia. É quase como a também normalização da morte em massa. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, considera um ataque ao único hospital em funcionam na Faixa de Gaza e os assassinatos de cinco jornalistas no bombardeio de segunda-feira, em Khan Yunis, como um "acidente trágico". É quase sempre a mesma desculpa esfarrapada: a de que o Hamas usa hospitais como base. Como se isso legitimasse o massacre de civis. Ontem, Israel afirmou ter eliminado "seis terroristas" no hospital e alegou que o alvo era um cinegrafista do Hamas. 

No Brasil, não se pode mais defender as aspirações — legítimas, diga-se de passagem — do povo palestino por um Estado independente e soberano. Pouco antes de escrever este artigo, o ministro da Defesa de Netanyahu, Israel Katz, chamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de "antissemita apoiador do Hamas". Tudo porque Lula tocou em um grande tabu, ao comparar as ações das Forças de Defesa de Israel em Gaza às do Exército nazista durante o Holocausto. Todos os dias recebemos imagens de Gaza pelas agências de notícias. Muitas delas mostram crianças de corpos esquálidos, engolidos pela fome.

A distopia segue seu curso na guerra da Rússia contra a Ucrânia. O presidente Vladimir Putin parece determinado a forçar a ex-república soviética a ceder parte de seu território. É mais um absurdo de um conflito repleto de absurdos. As forças russas sequestraram cerca de 20 mil crianças ucranianas e as levaram para territórios ocupados ou para a própria Rússia. Mais um sinal de um mundo em dessaranjo. 

 

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