Folha de S. Paulo
Perdão a golpistas é retrocesso que pode nos
levar novamente ao chumbo da ditadura
[Resumo] Conceder indultos a golpistas e
conspiradores tem sido uma tradição no Brasil do pós-guerra, o que só incentiva
novas tentativas de tomada armada do poder. Se a anistia de 1979 revelou-se
depois indispensável para pacificar o país, afinal os militares ainda estavam
no poder, repetir agora o perdão judicial a Bolsonaro e demais réus condenaria
a uma instabilidade política que já parecia superada, avaliar autor.
Vários políticos de direita defendem uma anistia aos réus envolvidos na trama golpista liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo reportagem da Folha, o grupo inclui cerca de 300 deputados, maioria na Câmara. Por detrás desta reação contra o julgamento do STF está o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que se move com medo da família Bolsonaro e de olho nas eleições presidenciais do ano que vem.
Do ponto de vista histórico, a anistia não é
uma ideia completamente abilolada. O Brasil foi diversas vezes sacudido por
tentativas de golpe, cujos conspiradores acabaram sendo anistiados em indultos
que, por sua vez, geravam incentivos para novas conspirações. Esta corrente de
instabilidade marcou o sistema político do pós-guerra, a primeira experiência
democrática brasileira.
Getúlio
Vargas se suicidou em 1954 para evitar um golpe montado pela
oposição e por setores das Forças Armadas. O vice-presidente Café Filho tomou o
poder, mas se ausentou do cargo, dando lugar a Carlos Luz, o presidente da
Câmara. Luz se mancomunou com militares com o objetivo de evitar a
posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek.
O ministro da Guerra, o
general Lott, um legalista, deu um golpe preventivo em Luz para
garantir que JK assumisse a Presidência. Mesmo assim, em 1959 os militares
pegaram em armas contra JK, já presidente, nas frustradas quarteladas de
Jacareacanga e Aragarças.
Ninguém foi condenado pelas tentativas de
golpe da década de 1950, e a conspiração só cresceu nas Forças Armadas,
culminando em 1964. Os ditadores não mostraram benevolência enquanto estiveram
no poder: o regime militar cassou, exilou, prendeu, torturou e assassinou
oponentes ao longo de duas décadas.
O general
Geisel iniciou um longo processo de abertura ao assumir a
Presidência, em 1974. A distensão, contudo, suscitava uma série de questões ao
governo. Se deixassem o poder, quem garantiria que os militares não seriam
julgados e condenados por seus delitos?
O núcleo do regime tinha medo dos civis. Já
os linha-dura, que haviam torturado e matado, tentaram armar um golpe contra
Geisel. Como de praxe, os conspiradores saíram impunes, mas nem por isso
pararam de explodir bombas e perseguir opositores à revelia do comando militar.
A redemocratização foi viabilizada por um
acordo baseado na Lei da
Anistia de 1979, que livrou políticos oposicionistas e os criminosos
do regime de qualquer punição, apesar de excluir os guerrilheiros condenados
pelos tribunais militares. A anistia era uma garantia sobretudo aos ditadores e
agentes da repressão, não à oposição que havia seguido o caminho da luta
armada.
O
oposicionista moderado Tancredo Neves, do MDB, saiu candidato a
presidente nas eleições indiretas de 1985, tendo como vice José Sarney, um
homem do regime, egresso da Arena. Com apoio de diversos políticos da ditadura,
a chapa Tancredo-Sarney bateu Paulo Maluf no Colégio Eleitoral.
A anistia e o novo governo civil deram as
garantias necessárias para que os militares voltassem aos quarteis, inclusive
os linha-dura, que submergiram na política nacional, ao menos até a vitória de
Bolsonaro em 2018.
No livro "Democracia Negociada: Política Partidária no Brasil da Nova
República", Fernando Limongi e eu argumentamos que, sem as
conciliações iniciadas na anistia de 1979, a ditadura teria durado mais,
possivelmente sob o julgo da linha-dura.
Apesar de ter à época revoltado vários
democratas, o arranjo que se concluiu na posse de Sarney foi necessário para a
construção de uma democracia sólida e duradoura. Inédito na história do país, o
regime em que vivemos não mais permite tentativas impunes de golpe; vem daí a
importância do julgamento de
Bolsonaro no STF.
Se a anistia era indispensável para pacificar
o país há quatro décadas, ela terá agora efeito oposto, capaz de jogar por
terra a estabilidade democrática conquistada na Nova República. Os militares
estavam no poder em 1979, controlando tanto as armas quanto a caneta com a qual
se aprovaria a abertura. Naquela época, ou a oposição negociava, ou seguiríamos
em um regime de exceção.
A situação é hoje bem diversa: os militares
não estão no poder, e a maior parte da cúpula das Forças Armadas opôs-se ao
golpe de Bolsonaro.
Não há mais necessidade de negociar com
golpistas. Se políticos
de direita emplacarem a anistia, novas tentativas de golpe
fatalmente virão, nos condenando ao retorno ao passado, à instabilidade da
democracia do pós-guerra ou, pior, ao chumbo da ditadura militar.
*PhD em História Econômica pela London School
of Economics (LSE)
e professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV
EESP)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.