segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Entrevista | Daniel Aarão Reis: Não acredito em anistia 'irrestrita', mas talvez se chegue a meio-termo

Professor da UFF avalia que condenação de Bolsonaro e militares é importante para abalar certeza de impunidade, mas indica que golpismo não é vencido só com julgamento judicial

Por Bernardo Mello / O Globo  

O historiador Daniel Aarão Reis avalia que, apesar da forte representação do bolsonarismo no Congresso e da simpatia de parte do Centrão, uma anistia "ampla, geral e irrestrita" dificilmente será aprovada. Professor da UFF, ele acredita, no entanto, que talvez haja um meio-termo, com redução de penas. Um efeito muito positivo do julgamento da trama golpista, indica Aarão Reis, é que "a certeza da impunidade, que parece ter sido importante no golpe de 1964, agora ficou abalada".

É possível dizer que a democracia brasileira mostrou força ao se condenar um ex-presidente e militares por tentativa de golpe?

O ineditismo do julgamento e da condenação é um aspecto importante, especialmente com nosso histórico de golpes e anistias. Mas ideias só são vencidas por ideias, e não por condenações jurídicas. Seria um erro tomar o julgamento como prova de que se derrotaram as ideias golpistas.Venho alertando para o problema de subestimar a extrema-direita, que se fortaleceu no país desde 2013, inicialmente de forma subterrânea. A democracia é um dos poucos regimes que permitem que seus inimigos se pronunciem. Isso confere a ela uma instabilidade básica, embora também possa ser fundamentada em maior ou menor medida.

Em que medida uma anistia, como a defendida por aliados de Bolsonaro, pode aumentar ou reduzir essa instabilidade?

Um aspecto fundamental do golpe de 1964, que ajudou na desidratação do governo João Goulart, foi que a defesa da democracia não estava enraizada nas massas populares. Hoje há uma crise de confiança com o establishment político. Reduzir o debate eleitoral de 2026 à anistia seria interditar qualquer discussão sobre como estender esses valores democráticos para a vida do brasileiro comum, como aproximar esse establishment da vida real.

A correlação de forças no Congresso, hoje, se difere da que levou a uma anistia para os militares em 1979?

O bolsonarismo tem representação forte no Parlamento, mas não acredito em uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. Um efeito muito positivo desse julgamento é que a certeza da impunidade, que parece ter sido importante no golpe de 1964, agora ficou abalada. Talvez se chegue a um meio-termo, com uma redução de penas. Nosso centro também é muito afeito a esse tipo de conciliação, e acredito que as pressões do governo Trump irão se intensificar.

As possíveis retaliações do governo dos EUA podem impactar o cenário eleitoral brasileiro em 2026?

A pressão do Trump gerou um mote unificador para as esquerdas e o governo Lula, que é o discurso nacionalista. Podemos dizer que isso é um “presente”, fazendo uma analogia com a forma como Lenin descreveu, em 1914, a entrada do Império Russo na Primeira Guerra. Mas a questão é que o nacionalismo é uma hidra de muitas cabeças. Se você não combiná-lo bem com democracia, pode gerar resultados perigosos, e ainda não vejo essa combinação nos discursos nacionalistas contra Trump.

Qual é esse risco?

As doutrinas nacionalistas podem fechar portas para um discurso mais plural, anular o contraditório, como vimos nos EUA durante a guerra do Vietnã, ou na Venezuela e na ditadura de Cuba. Mas também podem desembocar em regimes democráticos, como ocorreu após a luta contra o nazismo na Europa. Nesse discurso de “quem não está a favor, é traidor da pátria”, me preocupa quem interpreta os desígnios da pátria. A democracia garante que cada um coloque suas interpretações.

O senhor é crítico da chamada “teoria dos dois demônios”, que confere peso semelhante aos radicalismos de esquerda e direita nos eventos que levaram ao golpe de 1964. Enxerga a possibilidade de que uma visão semelhante surja sobre a atual trama golpista?

O voto do ministro Luiz Fux tentou trazer uma ideia de que a conspiração golpista não foi tão grave assim, e que foi equivalente a outros episódios, como as manifestações de 2013, um movimento que começou pela esquerda e depois foi tomado pela extrema-direita. Esse raciocínio pode ser retomado amanhã para justificar repressões a movimentos sociais. É preciso saber distinguir bem as pessoas que querem destruir o sistema daquelas que querem reformular aspectos importantes do sistema. O movimento negro dos EUA nos anos 1960 frequentemente infringia leis que impediam manifestações.

O fato de chefes militares terem ficado contra decretar estado de defesa, como pretendiam Bolsonaro e aliados contra o resultado da eleição, mostra um avanço no papel das Forças Armadas?

A Constituição de 1988 é cheia de concessões, introduzidas como facas em seu corpo, e uma delas é esse artigo 142, que deixa muita coisa a cargo da interpretação dos comandantes militares. O ideal era que esse artigo fosse modificado. É preciso lembrar que a grande maioria dos conspiradores militares dessa trama eram jovens à época da promulgação da Constituição. Ou seja, se criaram na Nova República, mas com perspectivas radicalmente antidemocráticas.

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