Folha de S. Paulo
Caso do Pizzagate mostrou que a maioria dos
que diziam acreditar numa narrativa ideológica não agiram de acordo com a
crença
Militantes políticos acreditam de
verdade nas narrativas que seus grupos impulsionam? Um
experimento natural mostra que não ou, pelo menos, não cegamente.
Em 2016, durante a campanha presidencial americana, ganhou corpo a teoria conspiratória do Pizzagate, segundo a qual membros do Partido Democrata, incluindo Hillary Clinton, faziam parte de uma quadrilha que aprisionava crianças no porão de uma pizzaria em Washington, a Comet Ping Pong, para utilizá-las como escravas sexuais. Pelas pesquisas, milhões de americanos "acreditavam" no Pizzagate, mas um único indivíduo, Edgar Welch, tomou a atitude compatível com sua crença e tentou libertar as crianças. Armado, ele invadiu a Comet. Após cerco policial, foi preso.
Registraram-se também algumas ameaças contra
os donos e funcionários da pizzaria, mas a esmagadora maioria daqueles que
diziam crer na história se limitou a fazer avaliações negativas da Comet.
Convenhamos que criticar a excelência
culinária da pizzaria não é uma resposta muito razoável para quem realmente
acha que ela esconde crianças escravizadas no porão.
O paradoxo se dissolve se assumirmos como
verdadeira a hipótese de Dan Sperber e Hugo Mercier à qual sempre aludo aqui.
Segundo a dupla de pesquisadores, a razão não evoluiu para nos fazer encontrar
a verdade, mas apenas para nos fazer vencer discussões e, com isso, aparecer
bem diante do grupo ao qual pertencemos.
Ao falar mal das pizzas da Comet, eu já
demonstro minha lealdade à turma que rejeita o Partido Democrata, sem
necessidade de enfrentar a polícia ou correr outros riscos. É apenas sob
circunstâncias muito especiais que ferramentas da racionalidade, como a lógica
formal e o cálculo probabilístico, nos levam, talvez não à verdade, mas a
tentativas honestas de encontrá-la. É o que ocorre, por exemplo, na ciência.
Quando aplicadas fora dos rigores de uma
metodologia, essas ferramentas funcionam como armas retóricas, que tornam as
narrativas ideológicas mais convincentes e fazem brilhar mais quem as utiliza
com maestria.
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