segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Entrevista |‘Discurso da defesa da anistia é um discurso conveniente’

Cientista política diz que no Congresso a discussão sobre eventual anistia tende a ser colocada em segundo plano

Por Marcos de Moura e Souza / Valor Econômico

O ex-presidente Jair Bolsonaro e outros condenados por tentativa de golpe não devem nutrir muitas esperanças de que uma mobilização de seus aliados no Congresso leve à aprovação de uma anistia que os beneficie. O caminho mais provável para eventual reversão de suas penas é outro.

“Eu acho que as chances deles são mais por uma saída de algo que faça a reversão do processo que os condenou. Algo pela esfera judicial”, disse em entrevista ao Valor a doutora em ciência política e professora da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV EESP), Lara Mesquita, citando a influência do contexto político nas decisões.

“Se o nosso Judiciário fosse menos politizado, seria possível ter mais segurança de que essa decisão não vai ser revertida daqui a alguns anos.” 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Que mensagem a condenação de Bolsonaro passa para políticos brasileiros?

Lara Mesquita: A mensagem é que o custo de uma aventura desse tipo é alto. É alto em termos de perda de liberdade, em termos econômicos e de viabilidade da carreira política. O recado é claro para os políticos: “Cuidado onde vocês vão se meter, porque isso pode ter consequências que antes não vinham, mas agora elas virão.”

Valor: E qual é a mensagem para o país?

Mesquita: A primeira mensagem é sobre uma mudança de paradigma na história política recente brasileira. Nenhum golpe ou tentativa de golpe, desde Getúlio Vargas, teve condenação dos seus mentores e da ala militar envolvida. Antes do golpe militar de 1964, teve um monte de golpe, contragolpe, ameaças de golpe. De Vargas até hoje nunca houve uma condenação, e a resolução da ditadura militar do Brasil também não incluiu nenhum tipo de punição, nem para os militares, nem para a ala civil envolvida, para os políticos, não teve inelegibilidade, nada disso. Então, após 40 anos de democracia, a gente não está mais negligenciando as ameaças democráticas e isso está se refletindo em punição severa, tanto para atores civis quanto para atores militares, o que é algo inédito. A gente tem ex-presidentes condenados por corrupção no Brasil, mas não por ameaça à democracia. Então aqui tem um marco importante para a história democrática brasileira. Em relação aos aliados mais fiéis de Bolsonaro, não sei se a condenação muda a percepção deles porque eu acho que eles não acreditam na Justiça, no Supremo, acham que está todo mundo comprado. Para esses eleitores, o sistema todo está corrompido e eles são o bastião da democracia.

Nos próximos dias, haverá discursos mais coléricos contra o STF. Mas depois a fervura vai baixar”

Valor: Quais deverão ser os primeiros efeitos em termos de mobilização política que as condenações produzirão?

Mesquita: Acho que a primeira tendência da mobilização política vai ser mais extrema. O que deve acontecer no Congresso nos próximos dias são discursos mais calorosos, mais coléricos, contra o Supremo e demandas para que o Congresso responda à altura. Mas essa fervura depois vai baixar.

Valor: E o momento da fervura será suficiente para levar à aprovação de uma anistia a Bolsonaro?

Mesquita: Não tenho acesso a bastidores, não sei o que os cabeças do Congresso estão pensando. Claro que tem alguns que realmente acreditam e que gostariam que a anistia viesse. Mas pensando nos pragmáticos, eu acho que o discurso da defesa da anistia é um discurso conveniente em busca de outras coisas que são mais interessantes para eles.

Valor: O quê, por exemplo?

Mesquita: Uma das coisas é o receio de processos contra deputados e senadores no Supremo. Então poderá haver uma tentativa de renegociar padrões de condenação, de penas. Além disso, poderá haver uma tentativa de se retomar o debate sobre o controle do Orçamento. A execução das emendas orçamentárias estava muito livre e no ano passado o ministro do STF Flávio Dino mudou as regras. Para os parlamentares, a execução orçamentária ficou mais engessada. E acho que eles estão se vendo mais amarrados por conta de decisões do Supremo.

Valor: Como a discussão sobre anistia se relaciona com essas outras questões?

Mesquita: O que eu estou querendo dizer é que setores desses congressistas aliados de Bolsonaro, que são mais pragmáticos, não estão levantando a bandeira da anistia porque têm 100% de interesse em anistia. A bandeira da anistia vai ganhar uma visibilidade. O bode estará na sala. E pode se tornar uma moeda de troca. E em algum momento, esses políticos poderão dizer “tá bem, a gente recua da anistia, mas vamos dar uma moderada aqui nesses processos contra deputados e senadores que estão correndo no Supremo”.

Valor: Qual sua leitura hoje? Bolsonaro cumprirá a pena determinada pelo Supremo ou é de se esperar que uma anistia ou alguma outra medida reverta a condenação?

Mesquita: Não dá para negar que o nosso Judiciário é muito politizado e o fato de ele ser muito politizado diz que o equilíbrio político do outro lado da Praça dos Três Poderes pode interferir em como o Judiciário vai interpretar essa decisão daqui a alguns anos. Se o nosso Judiciário fosse menos politizado, seria possível ter mais segurança de que essa decisão não vai ser revertida. As chances de Bolsonaro e dos outros condenados não cumprirem suas penas não são tanto pela política, no sentido de aprovação de alguma lei pelo Congresso. Eu acho que as chances deles são mais por uma saída de algo que faça a reversão do processo que os condenou. Algo pela esfera judicial, como na Lava-Jato. Claro que, influenciado pelo contexto político, que pode ser tanto pela indicação de novos ministros do STF, pode ser pelo peso de um novo governo [do campo bolsonarista], mas me parece que a saída para eles teria que acontecer via STF.

Após 40 anos, o país não negligencia mais ameaças democráticas e isso se reflete em punições severas”

Valor: Por que essa visão de que o STF é muito politizado?

Mesquita: Em diversos momentos a Corte deixa de atuar apenas como guardiã técnica da Constituição e passa a moldar suas decisões em busca de reconhecimento político e social. Isso se evidencia no fato de que, mesmo sem alterações significativas em sua composição, a corte muda seu entendimento sobre um mesmo tema. Não raro vemos os ministros mudarem seus votos sobre um mesmo tema, sua interpretação da constituição, conforme o contexto político. Um mesmo juiz vai de algoz/vilão a herói em poucos anos, isso para um mesmo grupo social. Não estou dizendo que tomam decisões orientados por preferências partidárias, mas que o contexto político mais amplo parece ter influência sobre as decisões.

Valor: No Congresso, um projeto para livrar Bolsonaro e os demais seria muito mais difícil de avançar?

Mesquita: Demandaria uma mobilização muito grande. E se esse fosse o caminho, precisaria ser feito logo. Porque no ano que vem, ano eleitoral, eu não sei se deputados e senadores vão querer estar nessa agenda. Tem que ter um termômetro dizendo que isso vai ser um tema que vai mobilizar muitos eleitores para os deputados e senadores da direita toparem bancar essa agenda em ano eleitoral. Se não tiver uma indicação de que isso será crucial para os eleitores, para a definição do voto, eu acho que a direita não vai querer resolver isso no ano que vem. Então, teria que resolver este ano. Mas estamos em setembro e temos uns 20 dias para aprovação de qualquer legislação que interfira na eleição de 2026. O novo Código Eleitoral, derrubar ou não o veto do Lula para o aumento de cadeiras na Câmara dos Deputados, que jogo interno em alguns Estados vai mudar. Tem temas mais candentes [do que anistia a Bolsonaro]. Tem a votação do [projeto que aumenta a isenção do] Imposto de Renda, que é algo que todo mundo sabe que vai ser importante para a eleição do ano que vem. Tem essas disputas em torno da execução orçamentária. Tem outros temas que também mobilizam o Congresso. Não é que eles vão querer ficar só nisso [pautar ou não uma anistia].

Valor: Lula é o principal beneficiário das condenações do STF?

Mesquita: Não sei se ele é o principal beneficiário. Acho que os governadores que querem ser candidatos são os principais beneficiários, assim como a direita pragmática que consegue “se livrar” de uma candidatura que não é a que eles buscam, mas que, para eles, seria muito difícil de rechaçar. Algumas pessoas dizem que a reeleição seria mais fácil para o Lula se fosse uma disputa contra o Bolsonaro.

Valor: A prisão fará Bolsonaro perder sua influência na política?

Mesquita: Continua havendo uma fatia de eleitores bolsonaristas e que acham que ele vem sendo perseguido e que a democracia está deturpada. Ele consegue liderar um grupo de eleitores, um grupo de representantes no Congresso. Então ele sai de cena? Não. Ao mesmo tempo pode ver diminuir sua influência. No caso dos governadores que aparecem como pré-candidatos, nenhum deles tem um registro público de endosso do Bolsonaro. Dado que ele está preso [prisão domiciliar determinada antes do julgamento encerrado no dia 11, no âmbito de outro inquérito], proibido de gravar vídeo, áudio, de usar o celular, rede social, a única maneira que ele tem para fazer o endosso público é escrevendo uma carta. Será que uma carta do Bolsonaro como peça de publicidade eleitoral vai ter o mesmo peso do que se fosse uma peça de publicidade? O Tarcísio [de Freitas, governador de São Paulo, cotado para a disputa presidencial em 2026] pode aproveitar alguma coisa da eleição para governo do Estado de São Paulo, alguma foto. Pode, mas é diferente de você ter o Bolsonaro subindo no palanque, de ir lá gravar um vídeo.

Valor: A prisão de Bolsonaro tende a enfraquecer qualquer candidatura da direita?

Mesquita: Acho que não enfraquece, mas diminui o potencial do endosso.

Valor: Ainda assim, o nome da direita que vier a disputar a Presidência precisará ter um selo de Bolsonaro em sua candidatura? Mesmo estando ele preso?

Mesquita: Para a candidatura de direita é sempre bom ter o selo Bolsonaro. Isso torna mais fácil a adesão dos eleitores mais fiéis ao ex-presidente. Mas eu acho que esses eleitores não vão ter alternativa. Essa necessidade de sinalizar o endosso de Bolsonaro eu entendo estar sendo superestimada. Se definir o quadro pelo Tarcísio, tanto os eleitores quanto os filhos do Bolsonaro vão aderir por gravidade.

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