Folha de S. Paulo
Julgamento de Bolsonaro e seus generais só
precisa ser justo com os fatos e a lei
Jair
Bolsonaro não está sendo julgado por seu curriculum vitae ou pelo
conjunto da obra. Nem pelo vermelho de ódio dos seus olhos. Estivesse, não
haveria pena justa para o tempo de vida que nos resta. Será julgado pelo mais
grave crime de que já foi acusado, também o mais grave crime do Código Penal.
Será condenado por abundância de provas de um crime complexo, planejado, ameaçado e tentado. Fosse bem-sucedida a tentativa, o exercício de pesquisa, opinião e crítica estaria interditado, como qualquer outra liberdade divergente. Um político perverso, que sempre se beneficiou da leniência do parlamento e da justiça civil e militar, terá sua responsabilidade atribuída.
O caso é juridicamente fácil, politicamente
difícil. Existem fatos e provas dos fatos, das intenções, das participações
individuais. Não há interpretações jurídicas controversas de valores
constitucionais ou morais, não há nuances doutrinárias que tornem absolvição
plausível. Não é caso de alta indagação legal, mas de alta octanagem política.
Pois Jair Bolsonaro não é réu qualquer, generais não são réus quaisquer.
Um caso assim exige não só serenidade
jurídica, mas coragem política, virtude pressuposta em juízes de supremas
cortes. Não precisam querer fazer história e entoar grito de heroísmo. Porque o
discurso judicial se trai e se queima quando cai na tentação populista.
Precisam apenas ser consistentes com os fatos e aplicar a lei penal com
precisão analítica, sem firulas. Terá sido heroico para a democracia e a
liberdade.
Eventual condenação de Bolsonaro e seus generais
não cura nem salva, não pacifica nem garante futuro melhor. Não reverte anistia
a torturadores e assassinos de dissidentes da ditadura militar. Não repara
falhas institucionais, mas faz justiça jurídica e histórica. Se não abre um céu
de democracia, ao menos ilumina o espectro da autocracia.
Dizer a lei a poderosos e criar precedente
respeitável desafia qualquer estado de direito, ainda mais em sociedade tão
oligárquica, violenta e desigual. Não é redenção nem happy end, mas dá fôlego e
energia a um renovado grito de "nunca mais". A exposição "Uma
Vertigem Visionária: Brasil Nunca Mais", no Memorial da Resistência, em
São Paulo, homenageia esse momento, não só o passado.
Cantinflas, adorado humorista mexicano,
ironizava a história do seu país: "Estamos melhor, mas estamos pior.
Porque antes estávamos bem, mas era mentira. Não como agora, que estamos mal,
mas é verdade." A piada faz um elogio ao valor da verdade: melhor
reconhecer que estamos mal a fingir que estamos bem. Na ação política, o
realismo é superior ao ilusionismo, sem perder a ternura do idealismo.
Estamos pior: o horizonte democrático global
está mais ameaçado do que esteve nos últimos 50 anos. A democracia brasileira
balança diante de onda de supressão dos direitos à liberdade e à diferença, de
diluição de institucionalidades. Valores constitucionais inegociáveis vão sendo
revogados em silêncio. Nossos motores de radicalização autoritária seguem
intocados.
Mas estamos melhor se reconhecemos que a
ameaça à democracia está viva, dentro e fora de casa; se condenamos inimigos da
democracia; se continuamos a investigar novos crimes. Melhor ainda se
soubéssemos como redesenhar e revitalizar a vida democrática daqui em diante.
Se tivéssemos um plano.
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