Folha de S. Paulo
Com sensação de jogo jogado, bolsonarismo
aposta em levar a partida ao tapetão da anistia
Tratando-se de um julgamento, é claro que
reviravoltas sempre podem pintar por aí, mas a expectativa das principais
torcidas políticas no Brasil hoje é que nada disso deva acontecer. O julgamento de
Bolsonaro e de seu círculo militar mais íntimo é um divisor de
águas na atribulada história da nossa democracia, não resta dúvida.
Para os torcedores, no entanto, não está
mobilizando emoções coletivas, com milhões diante da TV, o coração saindo pela
boca, como aconteceu em outros momentos igualmente decisivos da vida política
recente, a exemplo do julgamento do impeachment e das sessões mais dramáticas
da Operação Lava Jato.
O contraste não poderia ser maior. De um lado, a democracia brasileira fazendo história ao responsabilizar penalmente um ex-presidente e militares da mais alta patente por crimes contra a ordem republicana. De outro, a ausência daquele clima de Copa do Mundo a que nos acostumamos na política nacional, com cada cidadão vestindo as cores de um time, torcendo pelo resultado que lhe interessa e acompanhando cada detalhe dessa final decisiva.
Por que isso acontece? Porque as torcidas
políticas têm, até o momento, a sensação de "jogo jogado". Um lado
apenas aguarda a confirmação formal da condenação que já dá como certa para
iniciar a festa. No campo contrário, ainda se esperneia, mas por puro reflexo,
já convencido de que esse jogo está perdido. Faz isso enquanto escala os jogadores
e elabora táticas para tentar virar o resultado em outro lugar: o tapetão da
anistia.
Sob vários aspectos, um julgamento é
literalmente uma competição de narrativas. Os fatos, em si, não falam.
Encaixados em cadeias plausíveis de causas e consequências é que dizem alguma
coisa, tornam-se coerentes —contam, enfim, uma história. Os protagonistas dos
tribunais tratam de compor, com as mesmas peças, diferentes mosaicos, quadros
em que cada elemento ganha sentido. A expectativa que em geral acompanha essas
situações é sobre qual, afinal de contas, será a história mais convincente,
aquela em que se apoiará o juízo dos magistrados e da opinião pública
Mas não é o que ocorre agora. Os espectadores
não esperam surpresas ou reviravoltas.
Os bolsonaristas, por exemplo, que deveriam
estar esperando provas ou revelações capazes de inocentar seus líderes, não
demonstram ansiedade. Eles acreditam que já sabem o que ocorreu e têm uma tese
indiscutível sobre o julgamento. Na narrativa canônica do grupo, não houve
golpe. Se houve, Bolsonaro e os seus generais não estavam envolvidos. O
julgamento é uma farsa política, um ato de revanche de um Judiciário
autocrático contra um governo popular. A condenação já estava escrita antes
mesmo da investigação.
Está aí o único script possível no grupo, o
enredo no qual todos os fatos devem caber. E, se algo não couber, que se danem
as evidências: histórias sempre darão uma surra nos fatos toda vez em que
entrarem em conflito com eles. Nada pode ser dito, apresentado ou provado
naquele tribunal que desafie a narrativa já aceita e consolidada.
Nada há de singular nesse procedimento: é da
natureza de grupos coesos em situação de extrema competição política se
comportar assim, principalmente quando se convencem de estar sob grave ameaça.
Nada que seja dissonante dos pilares das crenças fundamentais do grupo sobre os
acontecimentos pode ser considerado ou assimilado. Nenhuma prova tem o condão
de convencer, nenhum fato é capaz de persuadir. Cada membro do grupo passa a
ser um vigilante: exige adesão dos demais, pune quem se desvia e repele com
dureza qualquer dissidente.
Nessa circunstância, repetir a mesma história
e reiterar as mesmas crenças não têm a função de persuadir a sociedade ou a
opinião pública. A percepção do grupo é que os "de fora" e os
"do outro lado" é que são dogmáticos, imunes aos fatos e tendenciosos
—não vale a pena perder tempo com eles. O mantra deve ser repetido, sim, mas
como liturgia e profissão de fé. Sua função é reforçar a coesão e a disciplina
do grupo.
Afinal, como se sabe em política e em
religião, quanto mais prospera a narrativa de perseguição e complô, mais
crescem a submissão ao grupo, a adesão incondicional às suas normas e a
intolerância contra quem discorda. Como os bolsonaristas já dão por certa a
condenação, a repetição das crenças sobre perseguição e inocência tem como
objetivo simplesmente garantir que ninguém largue a mão de ninguém.
Pelo menos até que chegue o tempo da desforra
e a partida possa ser jogada de novo —quem sabe em outro campo, com outras
regras e outro juiz.
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