O Globo
Cármen Lúcia foi concisa, de clareza não
entediante e natural, o que é raridade entre as disputas por holofotes do
colegiado
Dependendo do que cada um faz da própria vida, 27 anos é uma medida de tempo que se esgota rápido. Tomem-se gigantes da cultura musical como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain, Amy Winehouse. Cada um escolheu um viver em intensidade máxima, acelerada, que durou 27 anos. Morreram prematuramente de forma trágica, deixando órfãs suas legiões de seguidores. No outro extremo está Jair Bolsonaro. A sentença de 27 anos e três meses de prisão, mesmo se algum dia reduzida para um sexto da pena ou aliviada para prisão domiciliar, encontra um homem condenado a um perpétuo vazio. O vazio da desumanidade que semeou.
O que fez da própria vida, em 70 anos?
Desperdiçou-a, sempre em busca de atalhos, vantagens, conluios, arranjos. Como
militar, foi inglório — chegou a capitão reformado por uma dessas maracutaias,
mas a partir da sentença desta semana pode perder também a patente. Como
parlamentar, foi desprezível, juntando-se ao que há de mais corrosivo na vida
política nacional. E, como presidente, envenenou de tal forma as instituições
democráticas que algumas levarão tempo para ser sanitizadas. Uma delas, o
Supremo Tribunal Federal (STF), felizmente ficou de pé para julgá-lo.
Ironicamente, é a partir do voto soberano de
quatro dos cinco togados da Primeira Turma do STF que Jair Messias Bolsonaro
adquire agora uma marca inédita, histórica e indelével para chamar de sua:
primeiro ex-presidente do Brasil condenado por tentativa de golpe de Estado,
abolição violenta do Estado Democrático de Direito, liderar uma organização
criminosa armada para se manter no poder, além de dois outros crimes
consoantes. Nosso 11 de setembro também passa a ser data histórica de
consequências ainda inalcançáveis. Mas, ao contrário do golpe militar no Chile
em 1973 e do atentado terrorista às Torres Gêmeas de 2001, seu sentido exemplar
e civilizatório dá orgulho.
Ainda assim, Bolsonaro conseguiu escapar de
ser julgado como ser desumano. Não existe tribunal para isso.
— Presidentes não são treinados para ter ou
aparentar empatia, nem para fazer as vezes de pastores de almas doídas —
escreve o jornalista John Dickerson, autor de “The hardest job in the world —
the American presidency”.
Só que esse papel também faz parte do cargo,
pois tragédias ocorrem, e a nação precisa receber conforto e atenção do
cuidador em chefe. É conhecida a história do pai de um soldado americano morto
na Guerra da Coreia que enviou uma carta ao então presidente Harry Truman.
Inclusa no envelope, estava a condecoração militar Purple Heart recebida pelo
filho. O texto dizia:
— Como o senhor foi diretamente responsável
pela morte de nosso filho, pode ficar com essa insígnia para sua coleção de
troféus... Lamentamos que sua filha não estivesse na guerra para receber o
mesmo tratamento dado a ele.
Truman guardou a carta numa gaveta de sua
mesa de trabalho até morrer.
O desdém, o sarcasmo e a irresponsabilidade
com que Bolsonaro abandonou perto de 700 mil compatriotas à morte por Covid-19
durante seu mandato permanecem sendo um libelo à parte na avaliação dos males
que sua Presidência trouxe ao país. Embora estrangeira à condenação atual, a
dimensão desse apagão cívico irreparável também faz parte do DNA do personagem
julgado. O desprezo pela vida humana e a tentativa de desconstrução da
normalidade democrática andaram de mãos dadas naquele país à deriva,
capitaneado por um grupo de salteadores civis e militares.
— A presente ação penal é quase um encontro
do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro — disse a ministra
do STF Cármen Lúcia, no voto que formou a maioria pela condenação dos réus.
Foi concisa, de clareza não entediante e
natural, o que é raridade entre as disputas por holofotes do colegiado. Única
mulher entre os cinco magistrados da Primeira Turma (e também única mulher do
total de 11 integrantes da Corte), ela se referia especificamente à área das
políticas públicas dos órgãos de Estado.
Pois seria mais do que hora para o atual ou
futuros(a)s presidentes da República tirarem o Brasil do atraso e equilibrarem
essa composição antediluviana. Pelo menos antes do ano 2060, quando Jair
Bolsonaro, então com 105 anos de idade, poderá deixar de ser inelegível.
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