domingo, 14 de setembro de 2025

O país e o julgamento. Por Míriam Leitão

O Globo

A democracia não se vinga, mas não pode ignorar o que deu errado no passado, nem deixar de almejar um futuro diferente para as próximas gerações

A democracia não se vinga, mas deve se proteger. Durante mais de um século, esteve frágil diante dos atentados, por um erro plantado no berço da República: a pretensão de que os militares seriam os tutores do poder civil. De tempos em tempos, os que têm as fardas e as armas, fornecidas pelos cofres públicos, assombraram o país ou tomaram o poder diretamente. Sou da geração que pagou o preço mais alto. Pela primeira vez, temos a chance de construir um pacto novo, no qual os militares terão seu papel, sempre essencial, mas jamais para exercer o poder.

A poesia de Affonso Romano de Sant’anna foi trazida aos autos, no voto da ministra Cármen Lúcia que condenou os réus. No poema “Que país é este?”, há versos que parecem simples e são definitivos. “Uma coisa é um país, outra um regimento”.

O ministro Luiz Fux ficou sozinho no seu voto divergente. A democracia sempre aceitará os divergentes, mas o erro do ministro foi ver fatos isolados, onde havia um plano. Ele foi executado à luz do dia, gritado nos palanques de avenidas, analisado em reuniões ministeriais, dito em datas nacionais, escrito em documentos. O mais macabro dos papéis descobertos pela Polícia Federal foi impresso no Palácio do Planalto, e trazia o nosso verde-amarelo entregue a um punhal.

As penas foram duras, mas equivalentes ao mal que viveríamos caso a trama fosse bem-sucedida. “Conhecemos o caminho maldito”, alertou a figura solar de Ulysses Guimarães, quando promulgava a Constituição. As penas foram duras, mas o ultraje foi maior e o Brasil o sofreu por quatro anos. As penas foram duras, mas é fácil imaginar como seria o Brasil, neste momento, caso eles tivessem tido êxito. Nem precisamos da imaginação para construir o cenário, nós o temos de memória.

A História do Brasil tem requintes. O ministro Alexandre de Moraes ter nascido em 13 de dezembro de 1968 é um deles. No dia da decretação do terrível AI-5, nascia a pessoa que um dia seria o relator da primeira ação penal que julgaria generais por golpe de Estado. O governante que ofendeu tanto as mulheres foi condenado pelo voto de uma mulher. A lei usada para condená-los foi sancionada pelo líder da sedição, e tem a assinatura de outros três conspiradores. Uma mulher está no comando do Superior Tribunal Militar no momento em que o tribunal vai analisar a perda de patentes dos oficiais envolvidos, julgando-os pelo tipo penal “indignidade para o oficialato”.

A história tem idas e vindas, dirão. O Congresso pode votar uma anistia. Pode. A Constituição será consultada. A pessoa eleita em 2026 pode indultar os condenados. Pode. A Constituição nos orientará. São cenários possíveis e a beleza da democracia é que o país debate e escolhe seus caminhos em cena aberta. “Uma coisa é um país, outra o confinamento”.

Durante o governo Bolsonaro, não foram poucas as vezes em que escrevi aqui que ele cometia crimes e que a democracia era seu maior alvo. Organizei 153 dessas colunas em um livro publicado em 2021. Queria que fosse um alerta. O título é “A democracia na armadilha”. O último texto avisava que “a democracia morre no fim deste enredo”. Esta coluna começava sustentando: “O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da mulher que após ser perdoado volta a atacar e, muitas vezes, o fim é a morte da vítima.” E concluía: “A democracia está sendo agredida, o agressor é o presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis.” O país estava naquele 2021 na escalada autoritária cujos autores acabam de ser condenados.

O fato de o Brasil receber ameaças dos Estados Unidos quando está tomando decisões institucionais chega a ser caricato. Era o que chamávamos antigamente de “imperialismo ianque”. Mas a verdade é esta. O país foi alvo de hostilidades concretas, com as tarifas e com palavras ameaçadoras que incluíam a alusão ao poderio militar dos Estados Unidos. Parte da oposição aplaudiu, parte ficou em silêncio.

A democracia não se vinga, mas não pode ignorar o que deu errado no passado, nem pode deixar de almejar um futuro diferente para as gerações que estão chegando. “Espero que tenha sido encerrado o ciclo do atraso, marcado pelo golpismo”, disse o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ao fechar a sessão final do julgamento que condenou o ex-presidente, oficiais-generais e alguns civis pelo crime de atentar contra o estado democrático de Direito.

 

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