O Globo
A democracia não se vinga, mas não pode
ignorar o que deu errado no passado, nem deixar de almejar um futuro diferente
para as próximas gerações
A democracia não se vinga, mas deve se
proteger. Durante mais de um século, esteve frágil diante dos atentados, por um
erro plantado no berço da República: a pretensão de que os militares seriam os
tutores do poder civil. De tempos em tempos, os que têm as fardas e as armas,
fornecidas pelos cofres públicos, assombraram o país ou tomaram o poder
diretamente. Sou da geração que pagou o preço mais alto. Pela primeira vez,
temos a chance de construir um pacto novo, no qual os militares terão seu
papel, sempre essencial, mas jamais para exercer o poder.
A poesia de Affonso Romano de Sant’anna foi
trazida aos autos, no voto da ministra Cármen Lúcia que condenou os réus. No
poema “Que país é este?”, há versos que parecem simples e são definitivos. “Uma
coisa é um país, outra um regimento”.
O ministro Luiz Fux ficou sozinho no seu voto divergente. A democracia sempre aceitará os divergentes, mas o erro do ministro foi ver fatos isolados, onde havia um plano. Ele foi executado à luz do dia, gritado nos palanques de avenidas, analisado em reuniões ministeriais, dito em datas nacionais, escrito em documentos. O mais macabro dos papéis descobertos pela Polícia Federal foi impresso no Palácio do Planalto, e trazia o nosso verde-amarelo entregue a um punhal.
As penas foram duras, mas equivalentes ao mal
que viveríamos caso a trama fosse bem-sucedida. “Conhecemos o caminho maldito”,
alertou a figura solar de Ulysses Guimarães, quando promulgava a Constituição.
As penas foram duras, mas o ultraje foi maior e o Brasil o sofreu por quatro
anos. As penas foram duras, mas é fácil imaginar como seria o Brasil, neste
momento, caso eles tivessem tido êxito. Nem precisamos da imaginação para
construir o cenário, nós o temos de memória.
A História do Brasil tem requintes. O
ministro Alexandre
de Moraes ter nascido em 13 de dezembro de 1968 é um deles. No dia da
decretação do terrível AI-5, nascia a pessoa que um dia seria o relator da
primeira ação penal que julgaria generais por golpe de Estado. O governante que
ofendeu tanto as mulheres foi condenado pelo voto de uma mulher. A lei usada
para condená-los foi sancionada pelo líder da sedição, e tem a assinatura de
outros três conspiradores. Uma mulher está no comando do Superior Tribunal
Militar no momento em que o tribunal vai analisar a perda de patentes dos
oficiais envolvidos, julgando-os pelo tipo penal “indignidade para o
oficialato”.
A história tem idas e vindas, dirão. O
Congresso pode votar uma anistia. Pode. A Constituição será consultada. A
pessoa eleita em 2026 pode indultar os condenados. Pode. A Constituição nos
orientará. São cenários possíveis e a beleza da democracia é que o país debate
e escolhe seus caminhos em cena aberta. “Uma coisa é um país, outra o
confinamento”.
Durante o governo Bolsonaro, não foram poucas
as vezes em que escrevi aqui que ele cometia crimes e que a democracia era seu
maior alvo. Organizei 153 dessas colunas em um livro publicado em 2021. Queria
que fosse um alerta. O título é “A democracia na armadilha”. O último texto
avisava que “a democracia morre no fim deste enredo”. Esta coluna começava
sustentando: “O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da
mulher que após ser perdoado volta a atacar e, muitas vezes, o fim é a morte da
vítima.” E concluía: “A democracia está sendo agredida, o agressor é o
presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis.” O país estava
naquele 2021 na escalada autoritária cujos autores acabam de ser condenados.
O fato de o Brasil receber ameaças dos
Estados Unidos quando está tomando decisões institucionais chega a ser
caricato. Era o que chamávamos antigamente de “imperialismo ianque”. Mas a
verdade é esta. O país foi alvo de hostilidades concretas, com as tarifas e com
palavras ameaçadoras que incluíam a alusão ao poderio militar dos Estados
Unidos. Parte da oposição aplaudiu, parte ficou em silêncio.
A democracia não se vinga, mas não pode
ignorar o que deu errado no passado, nem pode deixar de almejar um futuro
diferente para as gerações que estão chegando. “Espero que tenha sido encerrado
o ciclo do atraso, marcado pelo golpismo”, disse o presidente do STF, Luís
Roberto Barroso, ao fechar a sessão final do julgamento que condenou o
ex-presidente, oficiais-generais e alguns civis pelo crime de atentar contra o
estado democrático de Direito.
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