Valor Econômico
Benefícios de Cid aquecem novamente o mercado
de delações e facilitam a captura daqueles que, na política e no setor privado,
engancharam os vagões seculares do atraso na carona da locomotiva golpista
O Supremo Tribunal Federal não se limitou a
promover uma condenação inédita na história das quarteladas do país, também
abriu as portas para que as delações sejam novamente recebidas na sala de
visitas do combate à impunidade. O julgamento coincide com uma operação
policial que pode levar ao banco dos réus aqueles que pegaram carona na
irresponsabilidade bolsonarista que colocou o país no pódio de mortes da
covid-19. Impunes, prosseguiram no assalto aos aposentados. E não apenas.
O ministro Flávio Dino foi o primeiro a demonstrar que as ações sob seu comando também podem ganhar um gás com a ressurreita delação. Nesta segunda, o ministro suspendeu repasses às emendas Pix de nove municípios, entre os quais duas capitais (Rio de Janeiro e Macapá), com base em relatório da Controladoria-Geral da União, e ainda encaminhou o apanhado para a Polícia Federal investigar os indícios de crime.
A manutenção dos benefícios do coronel Mauro
Cid, pego na mentira mais de uma vez, teve o claro propósito de mostrar que
delatar compensa. Depois de reabilitar a delação, o julgamento se dispõe a
avançar algumas casas na caça da saúva que continua a ameaçar o futuro do país.
Se só foi possível puxar o fio que resultou nesta condenação porque a CGU, ao
investigar o cartão de vacinação de Jair Bolsonaro, prendeu Cid e abriu seu
celular, o julgamento permite que se avance sobre os sócios desta e de outras
tragédias do bolsonarismo.
Algumas horas depois do início do ajuste de
contas do ex-presidente com a história, a PF prendeu Antônio Carlos Antunes e
Maurício Camisotti. O primeiro é o Careca do INSS, facilitador sem o qual a
vida dos grandes fraudadores seria impossível na capital federal. Abre uma
empresa atrás da outra para operar as fraudes nos programas sociais e blindar
os sócios controladores da empreitada que só se viabiliza com o aliciamento de
funcionários públicos e a conivência de políticos graúdos.
O Careca era procurador de associações
implicadas nas fraudes por fazerem descontos não autorizados nos benefícios de
aposentados. Camisotti é apontado pelas investigações como controlador dessas
associações e um dos principais beneficiários dos R$ 6 bilhões desviados pelo
esquema. A atuação de ambos precede este governo. E não apenas nesse esquema. A
CPI da Covid recebeu um relatório da Coaf que apontava Camisotti como
financiador oculto da Precisa Medicamentos, empresa que encabeçou a compra da
vacina indiana Covaxin pelo governo Jair Bolsonaro. O advogado desta compra,
Nelson Williams, é o mesmo que foi alvo de busca e apreensão da PF na mesma
operação que prendeu Camisotti.
Esta compra de R$ 1,6 bilhão, que se
comprovaria superfaturada e findaria suspensa, acabou por atrasar a aquisição
da vacina da Pfizer. Na sexta-feira passada, o senador Renan Calheiros
(MDB-AL), que presidiu a CPI da Covid, sugeriu, no X, a reabertura de tudo o
que foi apurado pelo colegiado e engavetado pelo ex-procurador-geral da
República, Augusto Aras: “Maurício Camisotti, preso no escândalo do INSS, surgiu
como financiador da Precisa e o superfaturamento da Covaxin”.
A teia de procedimentos que facilitou o
arquivamento começou pela anulação do relatório da Coaf por um juiz federal em
Brasília. Desta vez, a turma das anulações está cercada. A operação que prendeu
Camisotti foi autorizada pelo ministro André Mendonça sugerindo que o foro no
STF se deve ao envolvimento de parlamentares. Seriam os mesmos que também
atuaram para acobertar as operações da Covaxin, comandaram contratos do
Ministério da Saúde no governo Michel Temer e Bolsonaro e fizeram um dos mais
pesados lobbies do início do governo Luiz Inácio Lula da Silva para ficar com a
Pasta?
Quando as investigações do INSS se iniciaram,
um delegado da PF que não estava envolvido diretamente nas investigações pediu
que o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, entregasse o processo para Dias
Toffoli, que comandou o desmonte da Lava-Jato. O ministro seria “prevento”,
instituto que vincula processos relacionados, mas o PGR, Paulo Gonet, entrou na
parada e convenceu o presidente da Corte de que não havia prevenção no caso.
A Lava-Jato mostrou-se viciada pelo conluio
entre o hoje senador Sergio Moro (União-PR) e o ex-procurador Deltan Dallagnol,
mas as anulações em série vão muito além das deturpações. São apontadas por
procuradores como a principal razão pela qual a delação se transformou num mau
negócio. Deixou de valer a pena delatar esquemas que depois passaram a ser
perdoados pela justiça. Advogados de réus já atuam pela nulidade para que a
operação não produza delatores.
Na advocacia, o ocaso da delação é atribuído
ao pacote anticrime de 2019 que proibiu busca e operação e prisão preventiva
com base no instrumento. Só que a lei, intacta, não impediu que a delação Cid
fosse homologada.
É um instrumento importante não apenas para o
esquema do INSS e das emendas parlamentares mas também para as investigações da
lavagem de dinheiro do crime organizado, tão logo a PF consiga prender os
foragidos graúdos daquela operação. A aposta, agora, de ministros e procuradores,
é que a “ressurreição” do instrumento permita pegar aqueles que, na política e
no setor privado, engancharam os vagões seculares do atraso na carona da
locomotiva golpista.
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