Folha de S. Paulo
Guerra, essência da cultura militar, é
injeção de ódio na veia tanto em tempo de conflito como de paz
Juan Huarte analisava a relação entre
disposição de espírito e vocação para uma tarefa específica
"O eterno silêncio desses espaços infinitos me assusta". O enigmático fragmento dos "Pensamentos", de Pascal, é oportuno a quem queira pautar o silêncio público dos militares sobre o julgamento da trama golpista. Ainda é silente o murmúrio de "página virada". E silêncio tem voz interna. Se majoritário, é um susto com dupla face, tanto para a civilidade como para essa mesma maioria, relutante quanto a um golpe sem carimbo clássico, isto é, sem apoio americano e liderado por um clã miliciano. Foi por um triz.
Aceito esse viés atemorizante, seria também
oportuno remontar a Juan Huarte de San Juan, médico e filósofo espanhol do
século 16, precursor da psicologia bélica. Para ele, "os homens dotados de
notáveis capacidades intelectuais não valem nada no campo militar, porque suas
virtudes são perigosas na guerra: de fato, a calma, a retidão, o agir de modo
claro, a simplicidade e a misericórdia, na guerra, não só não servem para nada
como levam à derrota.
Quem combate não deve ter escrúpulos morais,
porque o inimigo não os terá: para isso, não lhe basta a coragem, deve estar
igualmente disposto à mentira e à traição" (Mário Perniola em
"Disgusti").
Não era uma crítica. Juan Huarte analisava a
relação entre disposição de espírito e vocação para uma tarefa específica. Aos
combatentes cabia só infligir danos aos inimigos. Em tese, o influxo posterior
do humanismo doutrinário nas convenções internacionais deveria matizar a
crueldade das matanças.
Mas a continuidade do arcaico espírito de
corpo gera um pensamento estratégico qualitativamente diferente na instituição armada.
Isso significa a persistência da ideia de
guerra como um processo natural de estabilização das relações de poder,
portanto, superior à instabilidade da busca sociopolítica por harmonia. Na
essência da cultura militar, ela é a constante que marginaliza ou relativiza os
valores de civilidade.
Guerra é, assim, injeção de ódio na veia
tanto em tempo de conflito como de paz. Nela, o novo é a tecnologia da morte.
Sua razão, sempre velha, repete regras e modelos que aparentam reeducar a
instituição. Mas sem visar pessoas concretas, as únicas que podem ser realmente
educadas.
Paz também é conceito militar. Em quase dois
séculos sem guerra, caso do Exército brasileiro, a paz nacional, regida por
indevida pretensão tutelar, tem sido manchada por atentados contra a
civilidade: quinze em 135 anos de República.
A ideologia da "guerra sem guerra"
extravasa do plano externo para o interno, fomentando o desapreço, de que
falava Juan Huarte, pelos valores alheios à caserna.
Daí o golpismo, doença senil das armas, polimorfa e endêmica nas Américas,
cujas sequelas aparecem na ruína da política, na deseducação democrática, no
deprimente barata-voa das vivandeiras de quartel.
O silêncio militar deixa intacto o contagioso
vezo incivil. Rompê-lo com uma fala antigolpista, autorreparadora, seria tão
histórico quanto o processo judicial. Um "fiat lux". O princípio
espiritual chamado Nação é incompatível com "o país dos trogloditas, que
devoram serpentes e carecem do comércio da palavra" (Borges, "El
Aleph").
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