Correio Braziliense
A democracia precisa ser acarinhada,
preservada e protegida. Impunidade e anistia são porta aberta para
autoritarismo e para novas tentativas de golpe
Relativizar tentativas de golpe é ser condescendente com o caos e a ruptura constitucional. O voto do cidadão é sagrado e precisa ser respeitado e acolhido. Derrotados têm que aceitar o revés nas urnas como uma consequência natural e legítima do sufrágio. Curioso pensar que tanto Donald Trump quanto Jair Bolsonaro foram acusados de buscar se perpetuar no poder, a despeito da vontade popular. Trump voltou ao comando do país, e a Justiça americana preferiu a omissão a desafiar o presidente. O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, assumiu o papel que lhe cabe e começou a julgar os acusados da intentona. Não é preciso fazer muita ginástica mental para perceber o desastre do qual escapamos. Basta voltarmos algumas décadas no tempo e visitarmos também outros países da América do Sul, que se uniram à chamada Operação Condor — uma ação repressiva conjunta para perseguir e matar comunistas.
No Chile, com a ajuda dos Estados Unidos, o
general Augusto Pinochet lançou o país em um regime de horror. Pais de família
eram arrancados de suas casas e executados. Ou forçados a embarcar em aviões e
lançados sobre o oceano. Muitas famílias nem sequer receberam os corpos de seus
entes queridos para o sepultamento. Foram 17 anos de horror. Oficialmente, o
país reconhece a morte de 9,8 mil pessoas.
Na Argentina, o general Jorge Rafael Videla
foi a personificação da ditadura, entre 1976 e 1983. Sob seu regime, 30 mil
civis desapareceram ou foram executados, muitos deles depois de sofrerem
torturas. Por sua vez, no vizinho Uruguai, pelo menos 380 mil pessoas foram
forçadas ao exílio durante a ditadura de Juan María Bordaberry (1973-1985).
Outras sete mil foram condenadas de forma extrajudicial e mais de 200 acabaram
executadas. As duas nações julgaram repressores e torturadores, em um corajoso
acerto de contas com o passado.
O Brasil enfrentou 21 anos de regime militar
(1964-1985). Estudantes, jornalistas, artistas e políticos da esquerda
conheceram as masmorras do DOI-Codi e o terror do pau-de-arara. Ao contrário
dos vizinhos, nosso país preferiu a impunidade. Foi incapaz de punir as mortes
e os desaparecimentos de 434 brasileiros, ainda que o número possa ser
consideravelmente maior. Exatamente quatro décadas depois, estivemos à beira do
regresso a um novo período de trevas. Por isso, o julgamento no Supremo
Tribunal Federal é tão importante: envia uma mensagem de reparação histórica.
A democracia precisa ser acarinhada,
preservada e protegida. Impunidade e anistia são porta aberta para
autoritarismo e para novas tentativas de golpe. Os Estados Unidos não teriam um
presidente que corteja a autocracia se tivesse sido julgado e condenado pela
invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quase dois anos antes do ataque
aos Três Poderes, em Brasília. Depois de conquistar a democracia a tão duras
penas, o Brasil tem a chance de dar um exemplo não apenas aos Estados Unidos,
mas também ao mundo.
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