Correio Braziliense
O ambiente é surreal.
Enquanto a blindagem era discutida em plenário, a oposição indicou Eduardo
Bolsonaro, que vive nos Estados Unidos, como líder da minoria na Câmara
A cena política brasileira nesta terça-feira
poderia facilmente ter saído de um roteiro de novela. A Câmara dos Deputados
decidiu votar a PEC das Prerrogativas, chamada de PEC da Blindagem, em meio a
um ambiente de forte pressão do Supremo Tribunal Federal (STF) e de
investigações sobre o mau uso das emendas parlamentares. A iniciativa revela a
força de políticos enrolados em desvios de recursos públicos, que se escondem
atrás do discurso de conter “avanços” do Judiciário sobre o Congresso. O que
está em jogo não é a defesa da democracia, mas, sim, a tentativa de redesenhar
as regras para escapar da responsabilização judicial.
A verdadeira motivação da PEC da Blindagem são as investigações a cargo da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal para apurar irregularidades graves em emendas Pix, mecanismo que transfere recursos da União diretamente a estados e municípios sem rastreamento. Das 10 cidades que mais receberam recursos de emendas, relatórios apontaram desvios em pelo menos nove, e o ministro Flávio Dino, do STF, determinou o aprofundamento das apurações, com indícios de fraudes que envolvem prefeituras, empreiteiras e parlamentares que direcionaram recursos sem transparência. Trata-se de expor a engrenagem de um dos maiores esquemas de desvio de recursos públicos da história recente.
O ministro Alexandre de Moraes, que já
concentra investigações relacionadas à tentativa de golpe de 8 de janeiro de
2023, também tem acompanhado de perto a tramitação desses inquéritos, na medida
em que eles se conectam à utilização de verbas públicas para financiar redes de
apoio político. Outros ministros, como Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, têm
defendido a necessidade de garantir rastreabilidade nas emendas, reforçando que
o princípio constitucional da moralidade administrativa não pode ser
relativizado. A reação da Câmara, portanto, é um contra-ataque direto ao
Supremo, no qual reivindica para si o poder de formar culpa e julgar, o que é
inconstitucional.
O ambiente na Câmara é surreal. Nesta
terça-feira, enquanto a blindagem era discutida em plenário, a oposição
anunciou a indicação de Eduardo Bolsonaro como líder da minoria. O gesto expõe
a lógica de vale-tudo que domina a cena política. Eduardo, que reside nos
Estados Unidos e está sob investigação por ter pedido ao governo Donald Trump
sanções contra o Brasil e retaliações ao ministro Moraes, assume a liderança
mesmo sem cumprir suas obrigações regimentais. A manobra visa evitar que suas
faltas resultem na perda do mandato, já que a condição de líder garante a
justificativa automática de ausências. É a transformação do regimento interno
em escudo político.
O presidente da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos-PB), pautou a votação da PEC da Blindagem e pretende fazer a
mesma coisa com a PEC da Anistia, em análises relâmpago, com votação remota.
Essa decisão desmoraliza a Casa e reduz o seu papel a uma espécie de “rainha da
Inglaterra”, sem poder efetivo sobre as manobras internas, com todo respeito ao
parlamentarismo britânico. Em vez de conduzir a instituição com autoridade,
terceiro homem na linha de sucessão da Presidência, Motta cede às pressões de
bancadas que desejam transformar a Câmara em um bunker contra a ação da
Justiça.
Corrosão da confiança
Não é coincidência que o plenário seja
convocado a votar agora uma proposta que, na prática, limita o poder do STF
sobre deputados e cria um ambiente de blindagem coletiva. Há um pacto perverso
entre os deputados de extrema-direita e seus colegas de todas as tendências
enrolados nos inquéritos policiais. A PEC das Prerrogativas é apresentada como
“resgate da Constituição de 1988”, mas funciona como uma tentativa de restaurar
privilégios perdidos ao longo de decisões recentes da Corte. Vale lembrar que,
em 2024, o Supremo já havia restringido o uso indiscriminado das emendas de
relator, conhecidas como “orçamento secreto”, impondo transparência mínima aos
repasses. O que se vê agora é a resposta legislativa: mudar a Constituição para
travar o controle externo sobre as atividades ilícitas de parlamentares.
Esse enredo se soma a outro movimento em
curso: a articulação pela anistia de Jair Bolsonaro e de militares condenados
pela trama golpista de 8 de janeiro de 2023. Apresentada sob o manto da
“pacificação nacional”, a proposta reedita velhas fórmulas de conciliação que,
ao longo da história, sempre serviram para perpetuar a impunidade. O resultado
foi o mesmo: proteger atores políticos e militares envolvidos em violações da
ordem democrática. Agora, repete-se a lógica, com um ex-presidente condenado
por tentativa de golpe buscando ser beneficiário da indulgência congressual.
Ora, a Constituição de 1988 veda a anistia
nesses casos porque foi concebida para não permitir que se repitam os fatos que
levaram às ditaduras de 1930 e 1964, que duraram 15 e 21 anos, respectivamente.
A analogia com a novela Vale Tudo é pertinente. A pergunta que atravessava os
episódios de Gilberto Braga, agora em remake, era simples e cruel: “Vale tudo
para vencer?” A sociedade reformula a indagação: vale tudo para blindar
deputados investigados e anistiar Bolsonaro? O risco é a corrosão da confiança
pública nas instituições, já abalada por anos de escândalos de corrupção e por
tentativas reiteradas de desestabilização da ordem democrática.

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