O Globo
O país é mais que uma empresa exportadora.
Tem princípios, política externa e responsabilidades continentais
O grande tema da conversa de Trump e Lula foi
comercial: as tarifas de 50% impostas ao Brasil. Um dos aspectos mais
discutidos antes desse encontro foi a química entre os dois presidentes.
Todo o respeito pela questão comercial e suas
consequências: empresas que podem falir, pessoas que podem perder o emprego.
Todo o respeito pela química humana, algo que encanta os brasileiros, pois em
nossa cultura é aconselhável se tornar amigo para realizar as coisas.
Apesar das ressalvas, é preciso admitir algo que só um alto nível de abstração pode ignorar: barcos de guerra, um porta-aviões, foguetes, submarino e 10 mil homens estão na costa da Venezuela — o poderio militar americano parece se concentrar na América do Sul. Exportar mercadorias nos mantém vivos e empregados. Mas o país é mais que uma empresa exportadora. Tem princípios, política externa e responsabilidades continentais.
Teremos de refletir como nos colocamos diante
dessa nova versão da Doutrina Monroe, lançada em 1823, cuja síntese ficou
conhecida pelo lema “América para os americanos”. Na época em que foi lançado,
era um lema de defesa contra as investidas coloniais europeias.
Maduro é um ditador sanguinário como Saddam
Hussein. Isso não nos impede de reconhecer que a guerra do Iraque foi um erro.
Em Kuala
Lumpur, Lula se dispôs a mediar o conflito entre Estados Unidos e
Venezuela. Oferta perigosa. A experiência com Maduro nas eleições foi negativa.
O Brasil se empenhou na preparação, monitorou o dia do pleito e, diante das
trapaças de Maduro, não teve outro caminho, exceto pedir as atas para saber
quem tinha realmente vencido. Nesse pedido, estava ao lado da Colômbia e do
México. Maduro simplesmente se recusou e ainda fez comentários irônicos sobre o
Brasil.
Esse é um dos lados do conflito. No outro,
está Donald Trump, um homem que num meme se fantasia de rei pilotando um avião
e despejando excrementos humanos em manifestantes pacíficos. Em síntese: são
dois antagonistas pouco confiáveis e avessos à diplomacia, o que torna inútil a
ideia de mediação. Talvez o melhor caminho seja reunir os líderes da América
Latina que ainda se movem dentro de um certo padrão de lógica e conseguir uma
posição coletiva.
A investida americana para derrubar Maduro
não visa apenas ao petróleo. A Chevron teve autorização de Trump para seguir
operando na Venezuela. O que está em jogo agora nessa versão da Doutrina Monroe
é também a presença da China. Trump se deu conta do avanço chinês nas relações
comerciais na criação da estrutura da Nova Rota da Seda e quer mudar o jogo. É
outro tema delicado para o Brasil, que me lembra um pouco a Segunda Guerra
Mundial, quando Getúlio Vargas oscilava entre os alemães e os Aliados. Esse equilíbrio
lhe valeu, ao pender para os aliados, a construção da Companhia Siderúrgica
Nacional e da Vale do Rio Doce.
Mesmo com as diferenças de contexto, o Brasil
pode tirar proveito dessa rivalidade, e Lula mencionou sua equidistância em
Kuala Lumpur. O encontro na Malásia abriu uma nova fase. Os governos já se
conhecem e dialogam. É preciso refletir muito sobre os próximos passos: o que
queremos além da queda das tarifas e da suspensão da Lei Magnitsky? Antes de
toda essa confusão, tínhamos nos esquecido de fazer política com os Estados
Unidos. Um lapso que nos custou caro.

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