terça-feira, 28 de outubro de 2025

Aperto de mãos, por Ricardo Marinho

Aprender uma língua, especialmente suas expressões espontâneas e informais mais comuns, é passar por um processo de domesticação social repetida que nos marca, quer queiramos e/ou não. Por exemplo, palavras que expressam uma agradável interrupção das obrigações de trabalho são sempre precedidas por algum termo que alivia o escândalo dos que abraçam princípios de forma rígida diante de tanta alegria quando se criou as merecidas férias, o lazer restaurador, prazeres inocentes etc. Não será assim quando chegarmos à prevista (em 1930) jornada de trabalho de 15 horas semanais para os netos de John Maynard Keynes (1883-1946)?

Se essa previsão pode ser conversada e discutida isso acontece porque estamos descarregados de razão. Quando alguém reúne argumentos e está convencido de que está carregado de razão, pode se tornar extremamente perigoso. Porque os motivos que enchemos nossas mentes não a sobrecarregam como um peso que deve ser suportado e que acrescenta gravidade à sua jornada, mas como a munição que carrega uma arma e a coloca pronta para disparar. Quem quer que esteja convencido de que está carregado de razão sente que pode e provavelmente deve atirar fatalmente contra seus adversários sem consideração.

A maioria de nossos concidadãos mais perigosos está convencida de que, à sua maneira, eles estão cheios de razão e que aqueles que criticam suas atividades o fazem porque se opõem a ela, a quem devemos adoração fiel desde os tempos do Iluminismo. É uma forma mais ou menos benevolente de loucura, é claro. Bárbaros são aqueles que acreditam ter uma razão incontestável do seu lado. Não ter a humildade cientifica ou não só se permite o espaço à arrogância que nada constrói.

A fé religiosa produziu ondas cruéis ao longo da história. Ainda hoje, alimenta ataques terroristas e busca dar sentido a tiranias dogmáticas, especialmente as sofridas pelas mulheres como o frutífero debate entre Manuela d’Ávila, Cíntia Chagas, Julia Duailibi e Mariliz Pereira Jorge demonstrou.

De uma forma muito menos sanguinária, mas tão agressiva como essas, a ortodoxia religiosa também leva à repressão dos costumes e à censura das manifestações culturais. Mas os crédulos inquisitoriais, de agora pelo menos, aceitam que estão agindo em nome de uma autoridade que não é deste mundo e na qual os infiéis não acreditam (mesmo que estejam dispostos a forçá-los a agir como se acreditassem).

Mas em nosso tempo sofremos com outros que exercem dogmatismo violento em nome de ideologias consideradas racionais ou não. Entendamos as aspas pois dizer “considerado” é para ilustrar o que não é. A verdadeira razão aceita dúvidas e considerações quando se impõe, e nunca por uma força que vai contra o respeito e pelas instituições sociais razoavelmente estabelecidas. A razão científica ou de qualquer outra matriz não pode ser invocada para exercer um despotismo semelhante ao dos dogmas. Um personagem racional não é apenas aquele que defende e prática da razão, mas também aquele que exerce sua razão de maneira razoável. Quando não se entende isso, podemos acumular preconceitos perigosos e não lições de sabedoria como a que hoje Trump e Lula nos ofereceram.

Em qualquer hipótese, o apocalipse citado na Exortação Apostólica Dilexi Te nada tem a ver com aquelas de curto prazo que são apenas uma tentativa de dogma dos ditos profetas nada confiáveis. E nada autoriza ninguém a quebrar as boas normas sociais de convivência para causar agitação que nunca edifica. O futuro de nossas sociedades é muito ameaçado por vândalos carregados de razão. Quanto mais apertos de mãos como o de Lula e Trump, melhor estaremos a curto e longo prazo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.