terça-feira, 28 de outubro de 2025

Possibilidades da política conectiva, por Paulo Fábio Dantas Neto

Mestre do pensamento social brasileiro, intelectual de grande talento para a retrospecção e a prospecção, com visão analítica aguda para a reflexão política e largos sentimentos públicos, Luiz Werneck Vianna, se ainda estivesse entre nós, teria completado 87 anos no último 14 de outubro. Deixou-nos há quase três, mas sua memória é vocacionada à vigência longeva e ativa, como sua vida.

Passou seus últimos anos escrevendo, com amargura e esperança, sobre várias coisas. Razão (e fé, por que não?) da sua esperança seria a exuberância promissora que via na vida popular brasileira, em movimentos e organizações civis da nossa cultura e cidadania. Como razão moderadamente cética de sua amargura, a carência de vocação pública dos políticos sistêmicos da democracia do Brasil atual, aos quais, mais de uma vez, referiu-se (sem deixar nunca de reparar em exceções), como “liliputianos”. É essa segunda dimensão de seu modo de ver a política recente que evoco para escrever este artigo.

A reputação de autor não dispensava Werneck de uma renitente, teimosa, vontade própria de ator. Quando usava o adjetivo metafórico que mencionei, ele parecia ser ao mesmo tempo Swift e Gulliver. A constante busca do ator emancipatório que marcou o seu trabalho intelectual levava-o a retratar sinteticamente a atitude política dos políticos reais do Brasil atual num patamar bem abaixo, em termos de motivações públicas, daquele em que estaria Gulliver, o personagem famoso de Swift, se acaso vivesse realmente entre nós, com sua estatura comparada às dos atores reais. Além da distância esperada, objetivamente inevitável, entre romance e realidade, haveria o flagrante de um declínio, em comparação com atores reais de outros contextos. Declínio cuja explicação poderia estar na conduta.

Swift, o escritor do romance, viajou nas nuances do seu personagem, cuja grandeza em Liliput, ilha de pequenos habitantes, é pequenez em Brobdingnag, ilha de gigantes. Ilhas antagônicas, ambas imaginárias. Traços e virtualidades exóticas, que a literatura imagina, sem precisar dissolver ou resolver.

Para Werneck, crítico da política pela práxis da ciência social, o “ponto” era não tanto a relatividade das estaturas de atores, mas a da vida social e política, vista na comparação de interlocuções e interações em várias ilhas. Realidades seriam melhor compreendidas por comparação do que por identificação ou extrapolação. Caberia à arte da política discernir o que são projeções da imaginação solta e o que são desejos possíveis de realizar. Atuar politicamente no Brasil, ou em qualquer lugar, é viajar por várias ilhas e entre elas tecer o fio da vida, um liame de valores em comum. Trazer, ao terreno onde o poder circula, a esperança da razão e da fé na exuberância do social exorciza, dentro do possível, a amargura. O liame da grande política estimula atores de várias estaturas, modelando-os com desafios que ela transporta ao cotidiano da pequena política. As estaturas crescem com esses desafios, estacionam se os desafios são raros, ou diminuem com o cansaço velhaco resultante da sua ausência.

Política ilhada e política conectiva

O introito veio para comentar algo que se passa, neste momento, entre Minas Gerais e Brasília. Envolve o destino político imediato do senador Rodrigo Pacheco, que foi presidente do Senado entre os anos de 2021 e 2024. Antes de chegar ao endereço do assunto, acionemos um pouco de memória.

Com o fim da fase crítica da pandemia, a política também precisava de vacina. Sob pressão do assédio extremista à democracia - orquestrado, desde 2019, dentro do palácio de governo - travou-se uma luta áspera entre um risco de metástase e uma hipótese de cura. O desfecho das eleições de 2022 trouxe desafios de convalescença e recomeço. Mas o tratamento político estagnou, nos dois anos seguintes. A política brasileira ilhou-se e estagnou num ponto onde se passou a preparar 2026 como revival de 2022. Colhemos agora, em 2025, o cansaço cético de uma velhice política, na qual desdobrou-se a estagnação.

O papel institucional e político do Senado durante a tormenta pós-pandemia não foi pequeno. Aquela Casa, sob o comando conectivo de Rodrigo Pacheco, moderou a erosão da relação republicana entre Executivo e Legislativo, que prosperava na outra Casa, dirigida por Artur Lira. Ao contrário deste último (que foi reeleito presidente da Câmara, em 2023, após a posse de Lula, pela aclamação de praticamente todas as bancadas partidárias ali atuantes), Pacheco, naquele momento, reelegeu-se vencendo uma militante oposição bolsonarista que se reuniu em torno da candidatura do senador Rogério Marinho. Ali não houve conciliação possível com uma direita vitaminada pelas urnas e disposta ao confronto. A razão disso é de uma obviedade esquecida, apesar do pouco tempo passado. É que nos dois anos anteriores - os iniciais da gestão de Pacheco - ali não houvera flerte populista com os arroubos despóticos do Executivo. Sem abandonar uma postura moderada, a política do Senado fez a resistência institucional sem percorrer o caminho pantanoso da oscilação entre governismo e oposição. A conexão ampla era um obstáculo que precisaria ser removido para que uma partitura golpista pudesse ecoar.

A pedra no caminho funcionou contra o golpe, mesmo tendo eficácia limitada contra o apetite patrimonial pedestre que a performance da cúpula da Câmara atiçava através de espaços ocupados no Executivo. Este, barrado seu intuito original, teve que priorizar um plano eleitoral e o fez terceirizando o governo. Era pedir demais o Senado ficar imune à tentação e aprofundar o contraponto. O desarme do golpe não estenderia de modo automático, contra outros males da República, o efeito daquela vacina. Conciliou com a tradição. A volta de Alcolumbre à presidência do Senado, com apoio de Pacheco, revelou esse limite. Porém, a frente imunizante formada no Senado foi imprescindível ao alívio democrático.

Setores progressistas desvalorizam essa memória complexa e positiva. Faltam matizes em suas críticas ao Congresso. Pregam, com razão, prioridade às eleições ao Senado, em 2026. Razão frágil se for apenas reativa ao objetivo bolsonarista de concentrar esforços ali, após a condenação judicial de seu chefe.

Uma prioridade estratégica em diálogo tenso com a pequena política

Uma eventual tentativa das forças democráticas de adotarem a prioridade às eleições ao Senado com disposição para um duelo polarizado, subordinado à prioridade maior de reeleger o presidente da República é puro voluntarismo, além de estreiteza política. Ainda que a imagem do presidente se recupere a ponto de garantir a reeleição (e ele merece o reconhecimento de que tem operado bem nessa direção, não desperdiçando a fortuna que lhe sorri) a inclinação conservadora do eleitorado é fato já bem mensurado. Nada é imóvel e há espaço para a vontade política, a médio prazo. Mas a curto prazo inexiste sinal de que esse eleitorado inflexionará à esquerda, mesmo ao centro, em eleições legislativas.

É fato que eleições ao Senado ocorrem em sistema majoritário de apuração de votos, o qual é sensível a polarizações. Mas elas se dão, objetivamente, no plano dos estados. Embora o fator nacional influa, a lógica polarizadora principal é a da disputa pelo poder estadual, que organiza a formação das alianças e de chapas majoritárias que delas derivam. Arranjos estaduais moldam o preparo do cardápio de candidaturas e, via de regra, os governadores são peças-chave nesses arranjos. A força relativa de partidos nos municípios é fator relevante e afeta os movimentos dos governadores. Mas de quantos governadores dispõe a esquerda? Em quantos estados ela tem quadros competitivos em eleições majoritárias? Em quantos o número de seus prefeitos permite-lhe um protagonismo? As respostas a essas três perguntas indicam que não pode ser “de esquerda” grande parte do plantel de candidatos capazes de não só serem confiáveis, no exercício do mandato, se se tratar de garantir que o Senado não seja arrastado a aventuras golpistas, mas de, além disso, vencerem a eleição.

Por outro lado, estarão em jogo duas vagas ao Senado em cada estado. Isso cria a expectativa de que o lulopetismo possa eleger vários senadores, o que alimenta uma aposta em radicais polarizações, pelas quais cada “lado” possa ficar com uma das vagas. Na hipótese dessa lógica dar certo nas urnas, a projeção do cenário do Senado, na próxima legislatura, seria uma ultrapolarização em que o campo lulopetista teria a condição de segunda força e arrastaria, na sua cauda, parlamentares dispersos de centro e mesmo mais à direita, desde que adversários da extrema-direita. Apostar nisso é estratégia oposta à de alcançar uma relativa pacificação política como condição para uma competição política mais plural, a médio prazo. O cenário imaginado, ao menos até 2030, seria o prolongamento do tipo de confronto que se deu em 2018, 2022 e que estaria já contratado, para 2026.

Já pela via da moderação política, a ascensão ao Senado de quadros aptos a criar vacinas contra o golpismo extremista passa por ajustamento a circunstâncias políticas estaduais e por recrutar esses quadros entre democratas de centro e de centro-direita. Aí o sentido não seria formar, no Senado, um “polo anti-bolsonarista” superior, por adição e força de gravidade, a um polo antilulista e antipetista. O sentido seria propiciar maioria democrática ampla, para isolar a extrema-direita e impedi-la de polarizar, de fato. Mais ou menos o obtido no Senado após as gestões de Rodrigo Pacheco. A governabilidade, até aqui, do Lula 3, deve muito ao influxo residual daquela articulação política.

Rodrigo Pacheco como caso exemplar

O caso do senador Rodrigo Pacheco faz de Minas Gerais um estado que teria já meio caminho andado na arquitetura dessa cobertura vacinal da política por alianças que levem em conta a preservação do Senado como fator moderador, que democratas gregos e troianos dizem ser prioridade.

Nesse sentido, seria de esperar que a reeleição de Pacheco interessasse muito não só a eleitores mineiros, mas a operadores da política democrática, em Minas e em todo o país. Se presente o interesse convergente, a ele se juntaria o histórico eleitoral recente do personagem. A não-confirmação prática dessa “razão razoável” remete-nos à alusão werneckiana às aventuras de Gulliver na ilha de Liliput.

As sinalizações que nos chegam até aqui, pela imprensa especializada nacional, são de que a candidatura do senador à reeleição estaria descartada, não por terceiros, mas por ele próprio. Estranho é não se fixar uma razão explicativa para essa suposta decisão. Mais estranho ainda é não haver comentários de partidos ou políticos (mineiros ou não), aventando a pertinência de uma reavaliação. Em vez disso, cogita-se que ele “preferiria” ir para o STF (se não houvesse no caminho um Messias), mas estaria avaliando o convite do presidente Lula para que seja candidato a governador. Interessa ao argumento deste artigo o que têm dito (ou deixado dizer), atores relevantes para o caso em questão.

Guilherme Kassab, presidente nacional do PSD, partido do senador, não inclui a reeleição de Pacheco entre prioridades, nas entrevistas em que é perguntado sobre a política nacional, ou mesmo a mineira. Refere-se, no máximo, ao que poderia ser uma pretensão legitima (caso o senador decidisse por ela). Coloca a hipótese num plano abaixo do da candidatura de outro quadro partidário, Alexandre Silveira, ministro de Lula. Sobre o governo do Estado vinha manifestando inclinação a apoiar a candidatura do também senador Cleitinho, um jovem político eleito como um outsider, com viés fortemente populista, pelo Republicanos, partido do governador Tarcísio de Freitas. Mas na semana passada Kassab anunciou a filiação ao partido do atual vice governador Mateus Simões, migrante do NOVO. Consta que Simões alimenta expectativa de candidatar-se ao governo, com apoio do governador Zema, embora tenha baixo desempenho em pesquisas (6% pelo Big Data, há duas semanas), ao contrário de Cleitinho, que as lidera. Sua ida para o PSD permite especular que se busca palanque estadual para a virtual candidatura presidencial de Ratinho Jr, o plano B de Kassab, para não deixar o partido (hoje ampliado com perfil consistente de centro democrático, distinto do centrão) dividir-se diante da chance de condicionamento bolsonarista forte da hipotética candidatura de Tarcísio. Nessa conta o nome de Pacheco não aparece.

Quem lembra dele é Lula, o que conta pontos para o critério (ou ao menos o faro) político do presidente em não apostar suas principais fichas num estado como Minas num outsider qualquer. Mas lembra de Pacheco para tentar fazê-lo candidato ao governo, não para a reeleição. A missão de disputar uma das vagas mineiras no Senado, o PT parece destinar à prefeita de Contagem, quadro histórico do partido.

A disposição de Lula não ameniza as incertezas sobre o futuro político do ex-presidente do Senado. Ao lado do interesse presidencial na sua candidatura, noticia-se também um “plano B” do presidente e/ou do PT mineiro para as eleições ao governo do Estado. Chama-se Alexandre Kalil, ex-prefeito de Belo Horizonte. Tendo disputado o governo em 2022 pelo partido de Kassab, ele acaba de visar passaporte ao continente da esquerda, filiando-se ao PDT. É o segundo colocado numa sondagem do Big Data, bem abaixo de Cleitinho e um pouco acima de Pacheco. Logo, o convite do presidente não exclui que haja um segundo palanque pela sua reeleição, com um viés outsider, inseparável da persona política de Kalil.

É politicamente explicável. Se Lula quisesse ou pudesse comprometer-se com uma relação exclusiva com Pacheco daria um tiro no pé. Na mesma sondagem, num cenário sem o nome do ex-prefeito de BH, suas intenções de voto migram bem mais para Cleitinho do que para Pacheco. Populismos afinam-se no chão da realidade eleitoral mesmo que populistas rivais não queiram. Uma análise realista não pode supor Lula desdenhando o apoio de Kalil. Precisará dele, para vencer o pleito nacional em Minas.

O mesmo realismo deve informar o senador Rodrigo Pacheco sobre as dificuldades eleitorais maiores que enfrentará se topar uma candidatura ao governo do que teria na busca da reeleição. Se não topar, a explicação não pode ser por aí. Poderá estar no desinteresse pessoal, mas as circunstâncias citadas acima sugerem também um bloqueio, no plano das injunções políticas, incluindo as de seu partido.

Em consequência disso, a cogitação da candidatura de Pacheco ao governo estadual levaria a uma mudança de partido. A simultaneidade de duas decisões difíceis não é trivial para um político que conserva um perfil muito distinto do de um outsider. A pergunta que cabe aqui é: valerá a pena?

Se é altamente duvidosa a resposta se se pensar apenas na carreira política do senador, haveria mais luz sobre ela se o olhar for alçado para além de Minas e enquadrar os interesses eleitorais de Pacheco, de Lula, do PT e do PSD, o futuro de Minas e do país numa análise mais abrangente, que contemple, inclusive, a importância estratégica da eleição ao Senado para a qualidade e a sustentabilidade da democracia brasileira. Com a questão assim iluminada, a resposta seria não, não vale a pena.

A realidade de injunções da pequena política parece dispensar essas luzes. A pequena política tem razões que a razão republicana desconhece. Queixas não cabem aqui. Razões da pequena política são legítimas e também têm seu valor. E por elas, ao que parece, os eleitores mineiros não serão chamados a decidir se Pacheco ficará no Senado. É a política como ela é. Imprescindível, como é.

Há, porém, outra pergunta, menos propensa a ser respondida com resignação. É realista democratas abrirem mão de quadros moderadores no atual momento da política nacional e murá-los em disputas por executivos estaduais com improvável êxito, ainda que o estado tenha o porte de Minas Gerais?

Continuar essa conversa aqui seria falar apenas do futuro de um ator. A conversa necessária é mais abrangente. É sobre um script que ganha vida na realidade e busca um ator.

Vontade e realidade

O Brasil precisa virar a página da década perdida no maniqueísmo político. Requer moderação republicana, bem escasso nas prateleiras da elite política. Política personalista cria ilhas individualistas numa sociedade moderna indisposta com a política. Trunca o processo democrático de competição e participação. Denuncia e usa, alternadamente, o patrimonialismo. Evoca sucupiras fora de tempo.

Deixemos de “entretantos” e vamos aos “finalmente”: os estados onde a escalação para o Senado excluir quadros de política preventiva contra golpismos e populismos são lugares de garimpo de políticos dispostos a correr riscos e praticar política grande na disputa majoritária nacional. Sim, é a volta do script da terceira via, que a sucção bipolar engoliu a ponto da figura política que o protagonizou em 2022 não estar disponível hoje para perseverar. Obviamente não é para vencer as eleições. É para publicizar a mensagem da moderação e não deixar que o primeiro turno transcorra apenas nos desvãos de uma polarização estéril e perigosa, enquanto a disputa pelo Legislativo segue cânones de velhos hábitos. E para a votação do terceiro excluído alcançar dois dígitos.

Como sabemos, pela experiência de 2022, uma candidatura assim não precisa ameaçar arranjos políticos estaduais dos partidos porventura envolvidos. Nem precisa antecipar suas opções no segundo turno. São as duas condições para transitar. E para partidos como o PSD, o MDB e o PSDB pode ser um modo da disputa presidencial ser alento, também, aos interesses de reforçar suas bancadas no Legislativo, o que dependerá da candidatura ter um discurso político.

Apesar de reconhecer as óbvias dificuldades, é preciso reconhecer também que tudo é incerto, mas que há vida política além dos polos e além do chamado centrão. Como ocorreu em 2022. Não há razão para pensar que o espaço hoje é menor que o daquele momento. Pelo contrário.

Hoje, felizmente, não há mais perigo de golpe. O bolsonarismo, mesmo com bancada aguerrida, não tem mais os recursos de poder do tempo em que seu chefe estava nele. Isolou-se mais, com a condenação judicial e as incursões de Eduardo Bolsonaro nos EUA. O lulismo, por outro lado, tem no Congresso trânsito menor do que em 2022. A recuperação da imagem do presidente deixa-a, até aqui, em nível próximo ao daquele momento. São fatores favoráveis a uma articulação de um centro "nem, nem". E já há esforços programáticos nessa direção - como o do MDB - que buscam fazer o “nem, nem” ir além da negação dos polos. Falta uma encarnação.

Estudar incertezas da política potencializa desejos de mudança. O cansaço, detectado por especialistas, de parte do eleitorado com a linguagem que emula sucupiras é efeito parasita da polarização sem causa pública. Embora ilhas dificultem conexões, não se consegue inaugurar o cemitério da vida política, que segue na estrada, podendo converter cansaço em esperança.

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