terça-feira, 28 de outubro de 2025

E o Brasil jamais esqueceu Herzog, por Míriam Leitão

O Globo

Os assassinos de Vladimir Herzog não imaginaram a força da resposta que o Brasil daria ao longo de meio século

Os homens que naquele sinistro sábado 25 de outubro de 1975 torturaram e mataram o jornalista Vladimir Herzog não tinham ideia de que estavam criando um movimento. No último sábado, 25 de outubro, a Catedral da Sé lotada disse que o crime nunca foi esquecido. O pedido de perdão, em nome da Justiça Militar da União, a Vladimir Herzog e a “todos os que tombaram e sofreram lutando pela liberdade durante a ditadura militar” feito pela ministra Elizabeth Rocha, presidente do STM, foi um gesto de coragem. Ela sabe que enfrentará críticas ao voltar ao tribunal. As Forças Armadas nunca admitiram seus erros, mas o Brasil jamais se esqueceu.

O movimento criado pela morte de Herzog tem sido resistência há meio século. A história é inspiradora e repleta de atos de coragem. Ameaçaram o cardeal Paulo Evaristo Arns, ele não se curvou e liderou o ato que mudou a história do Brasil. Estavam ao seu lado o rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano, Jaime Wright. Tentaram intimidar o sindicato de jornalistas mas, sob a liderança de Audálio Dantas, os colegas resistiram. Cercaram a Catedral, bloquearam as ruas, ameaçaram ostensivamente as pessoas. Ninguém cedeu. Oito mil pessoas foram há 50 anos à Sé e, a partir daí, a ditadura começou a acabar. Duraria ainda dez anos, faria novas vítimas, fecharia o Congresso mais uma vez em 1977, enviaria uma carta-bomba à OAB que matou dona Lyda e tentaria explodir bomba em show de estudantes no Riocentro, mas foi ali na Sé que aquele regime de terroristas teve sua maior derrota.

As Forças Armadas deveriam reconhecer, em nome do seu próprio futuro, os crimes cometidos. Nunca o fizeram. A filha de Wright lembrou que “os lobos continuam aqui e eles são perigosos”. Pois é, os lobos. Alguns generais e oficiais tentaram de novo, com Jair Bolsonaro, atacar a democracia. Em 31 de março de 2021, as Forças Armadas celebraram o dia e soltaram uma nota negando que houve golpe em 1964 e ditadura. Isso foi há apenas quatro anos e meio. O julgamento em novembro dos “kids pretos”, da tropa de elite do Exército, mostra que sim os lobos estão aí e são perigosos.

A voz de Fernanda Montenegro lendo a carta de Zora Herzog dizendo “minha dor não tem consolo” ecoou na Catedral. Lá estava o juiz Márcio José de Moraes que em 1978 deu a sentença que condenou a União pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. A corajosa defesa havia sido feita pelo advogado Sergio Bermudes, que faleceu ontem. O processo era resultado da extrema bravura de Clarice Herzog em entrar na Justiça contra a ditadura logo após o assassinato do marido. Ela podia ter ido para Londres, como propôs a empresa na qual trabalhava, mas quis ficar e lutar por verdade e justiça. Aquela sentença foi a primeira vitória. Na carta, dona Zora agradecia ao juiz.

A família Herzog manteve durante meio século uma luta comovente e sem trégua. As duas crianças, Ivo e André, que no ato de 1975, feridas e assustadas, agarravam-se à mãe Clarice, estavam, no último sábado, com seus filhos e seus cabelos brancos. Clarice, hoje no silêncio do Alzheimer, é uma heroína do Brasil. Ivo tem sido irredutível. Foi ele que, cercado pelo irmão André, pelo filho Lucas, e pelas sobrinhas Sofia e Helena, falou pela família. Agradeceu a presença do presidente em exercício, Geraldo Alckmin, e lembrou: “há 50 anos estávamos com medo do Estado, hoje o Estado está aqui conosco”.

As músicas sacras ou de resistência política cantadas pelo coral Luther King e por Cida Moreira, ao piano, embalaram a viagem no tempo. O movimento que surgiu do assassinato e da vil tentativa de criar a versão do suicídio, tem hoje frutos. O Instituto Vladimir Herzog é um bastião da resistência pela democracia e pelos direitos humanos. Houve um momento em que projetaram no telão os rostos das pessoas assassinadas pela ditadura. Eram muito crianças os nossos mortos. Logo depois foram projetadas as imagens de jovens negros mortos por ação do Estado nas periferias. O IVH e a Comissão Arns lembraram os que tombam hoje. Os Herzog continuam nos mostrando os valores que nos trouxeram até aqui.

Quando eu saía da Catedral da Sé, ao fim do ato de sábado, estudantes da ECA me entregaram o Jornal do Campus e apontaram orgulhosos uma reportagem sobre o tempo de Herzog como professor da USP. Os assassinos não tinham ideia da intensidade e duração da resposta que o Brasil daria àquele crime.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.