Folha de S. Paulo
Tanto conservadores como progressistas tentam
blindar suas ideias favoritas de erosão
Para que sociedades evoluam é preciso que
haja espaço para um pouco de iconoclastia
O Uruguai está a um
passo de aprovar uma lei de eutanásia. Um dos argumentos usados
pelos que se opõem à proposta, notadamente os religiosos, é que a autorização
legal para antecipar a morte erode a ideia de que a vida é valiosa e deve ser
preservada. Haveria um prejuízo social nessa desvalorização da vida.
Essa família de argumentos não é exclusividade do pensamento conservador. A esquerda recorre a eles com frequência quando defende proibições a fim de evitar a "normalização" de alguma conduta que ela julga reprovável.
Um exemplo? Parte dos progressistas considera
que piadas preconceituosas devem ser proibidas mesmo que contadas num auditório
fechado e só para quem queira ouvi-las. Apesar de, nesse cenário, as piadas não
produzirem vítimas diretas, o simples fato de elas serem contadas contribuiria
para normalizar o preconceito. Não vou negar que tais efeitos existam. Nós
vemos como aceitável justamente aquilo que pensamos que todo mundo faz. Não é
uma coincidência que as palavras "ética" e "moral" sejam
formadas a partir das raízes grega e latina para o termo "costume".
Reluto, porém, em comprar a conclusão de que
ideias que consideramos importantes, seja a do valor da vida humana, seja a da
necessidade de combater o preconceito, devam ser protegidas de contestação,
erosão ou mesmo ataques.
Como bom liberal, penso que ideias são sempre
"fair game" (alvo legítimo). O Estado e a polícia só devem intervir
quando uma disputa entre duas ou mais pessoas sai do campo das ideias e das
palavras e ganha contornos físicos. Ok. Ameaças, incitações e manipulações
claras também podem exigir repressão legal.
O ponto é que, se admitirmos a canonização de
ideias, tudo passa a ser sagrado. Qualquer grupo poderá cobrar estatuto de
inatacabilidade a suas ideias favoritas. E, quando isso acontece, a evolução
social fica mais difícil. Um bom exemplo disso é a dificuldade para legalizar a
eutanásia, a meu ver o mais líquido, certo e logicamente incontestável
dos direitos
individuais.
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