Valor Econômico
Na visão de integrantes do Planalto, a coalizão que será construída para o anao que vem também não pode tirar a identidade do projeto que o presidente quer apresentar à sociedade
Obra-prima da música popular brasileira, “Com
que roupa”, de Noel Rosa, serve de trilha sonora para algumas das reuniões
realizadas pelos estrategistas políticos do Palácio do Planalto neste momento
de reenquadramento das relações do governo com o Centrão.
O samba foi composto em 1929, quando Noel tinha 19 anos, e gravado no ano seguinte. Ganhou ruas e rádios no carnaval de 1931. Teve papel determinante para que o samba nascido no morro fosse adotado pelo asfalto e, impulsionado pelas frequências do principal meio de comunicação da época, mudasse a história do gênero musical. É um marco da música popular brasileira.
Existem divergências sobre o que inspirou a
canção. Tem quem sustente que Noel Rosa a compôs depois de brigar com a mãe,
que escondeu as suas roupas para impedir que o filho boêmio saísse com os
amigos para a noite carioca.
Há controvérsias. Outra vertente argumenta
que a música na verdade é uma crítica social, um retrato das motivações do
autor e dificuldades financeiras de grande parte da população: diante de um
convite casual para uma festa, a pessoa se encontra sem dinheiro nem meios para
poder se arrumar para o evento. Com sofisticação, o Poeta da Vila, apelido com
o qual passou a ser chamado depois da consagração, Noel Rosa mostrou como é
possível abordar qualquer assunto, tendo como matéria-prima os problemas
socioeconômicos da época e a boemia que o levaria à morte por tuberculose
poucos anos depois.
Os registros sobre a composição trazem,
também, a curiosa história segundo a qual a melodia dos seus primeiros versos
fazia uma sátira ao Hino Nacional. Mas com uma diferença na acentuação rítmica:
enquanto o hino segue o padrão de uma marcha, “Com que roupa” tem a levada
sincopada do samba. Diz-se que as paródias com o Hino Nacional eram comuns
naquela época. Vale cantarolar a letra de “Com que roupa” com a melodia do
hino, para constatar que a teoria faz sentido.
No Palácio do Planalto, entretanto, a música
embala o que é visto com um possível ponto de virada da administração Lula 3.
Para interlocutores do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, após o avanço na Câmara dos Deputados do projeto que isenta do
Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil por mês, este é o momento para que o
governo defina o figurino com o qual pretende chegar a 2026 e disputar a
campanha à reeleição. Não é sem justificativa, portanto, que autoridades do
Executivo e integrantes da base aliada no Congresso redobraram a aposta na
defesa da taxação de bancos, bets e bilionários depois da decisão da Câmara de
arquivar a medida provisória alternativa à alta do Imposto sobre Movimentações
Financeiras (IOF).
Esse discurso tem uma motivação fiscal, uma
vez que essa receita é fundamental para que políticas públicas previstas para o
ano eleitoral caibam na proposta orçamentária de 2026. Afinal, o projeto de
Orçamento do ano que vem prevê uma meta de superávit primário de 0,25% do
Produto Interno Bruto (PIB). Mas ele também está no bojo de uma estratégia
eleitoral mais ampla. O governo vê essa bandeira como um possível instrumento
para neutralizar o discurso antissistema que levou o ex-presidente Jair
Bolsonaro ao poder e ainda hoje é encampado por candidatos de extrema-direita
ou aventureiros.
Além disso, argumenta-se que é hora de
estabelecer os limites na relação com os partidos de centro e centro-direita
que detêm cargos no Executivo, mas não apoiam o governo em votações
estratégicas no Congresso e sequer pretendem caminhar juntos com Lula na
campanha à reeleição. Sabe-se que é preciso construir uma aliança para dar ao
candidato um tempo considerável de propaganda de rádio e televisão, espinha
dorsal das campanhas eleitorais. Mas dosando o custo-benefício dessas
parcerias.
É nesse contexto que as autoridades do
Planalto se debruçaram sobre as planilhas que detalham o organograma da máquina
pública federal e, nos últimos dias, passaram a demitir os indicados por
parlamentares infiéis ou ligados a partidos de oposição. Como mostrou o Valor, a responsável pela
operação é a ministra da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), Gleisi
Hoffmann. Entraram na mira, por exemplo, cargos na Caixa Econômica Federal,
Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba
(Codevasf), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e
Correios. Com o remanejamento, o governo tem a oportunidade de contemplar aliados
que fazem a diferença na condução dos trabalhos do Congresso ou reforcem os
palanques de Lula nos Estados, gerando um racha nos partidos do Centrão.
Na visão de integrantes do Planalto, a
coalizão que será construída para 2026 também não pode tirar a identidade do
projeto que Lula quer apresentar à sociedade. Vem à mente a letra esculpida por
Noel Rosa, segundo a qual é hora de mudar de conduta e ir à luta, ainda que não
esteja fácil ganhar dinheiro para gastar, pois o que se quer é se aprumar. “Vou
tratar você com a força bruta para poder me reabilitar, pois esta vida não está
sopa. E eu pergunto com que roupa que eu vou para o samba que você me
convidou.”
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