segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Mansão com vista para o lago, por Demétrio Magnoli

O Globo

O acordão precisa da anuência do STF, envolvido nas negociações desde o ponto de partida

À BBC Brasil, José Dirceu opinou que Jair Bolsonaro “não tem condições de ir para a prisão comum”. A voz mais relevante no PT, depois de Lula, acha “muito improvável que se possam colocar presos vulneráveis no sistema penitenciário controlado pelo crime organizado”, pois “as condições são péssimas”. É um recado ao público interno — e um largo passo no acordão que se costura.

“Justiça igual sob a lei” — o mandamento inscrito na fachada do edifício da Suprema Corte dos Estados Unidos é um pleonasmo, porque supõe-se que a justiça seja inerentemente igual. Anthony Kennedy, ex-juiz da Corte, ensinou a função do pleonasmo: enfatizar algo que geralmente se esquece. No Brasil, sem chance. Os manés vão para a Papuda, que “não tem condições” de receber os “homens bons”.

Collor ganhou uma mansão com vista para o mar. Lula, menos privilegiado, uma sala exclusiva na Polícia Federal. Bolsonaro, ao que tudo indica, terá uma mansão com vista para o lago. O item conclusivo do acordão depende do STF, mas parece selado. No máximo, os juízes de capa preta encenarão um arranjo transitório, talvez similar ao de Lula, antes de conceder o privilégio combinado.

Paulinho da Força opera como negociador-mor do acordão. O esquema deve resultar na redução de penas para todos os condenados pela tentativa de golpe de Estado, produzindo a soltura imediata dos amotinados manés do 8 de Janeiro, e abreviar a duração da prisão dos núcleos de chefia da conspiração golpista. Em troca, o Congresso incineraria a anistia “ampla e irrestrita” almejada pelo bolsonarismo.

No início, Paulinho articulou uma aliança entre o Planalto e o Centrão, destinada a isolar os Bolsonaros e o PL. Gleisi Hoffmann deu o sinal verde ao admitir a redução legislativa de penas, mas o sucesso das manifestações de rua de 21 de setembro entornou o caldo. Governo e PT recuaram, temendo a reação de sua base social. Na segunda versão do acordão, Paulinho articula uma aliança entre Centrão e PL, isolando o Planalto. A bênção tácita dos Bolsonaros derivaria da oferta da tal mansão com vista para o lago.

De um modo ou do outro, o acordão precisa da anuência do STF, envolvido nas negociações desde o ponto de partida. Dos juízes supremos, espera-se um duplo compromisso: pela inação, aceitariam a “anistia light” condensada no eufemístico PL da Dosimetria; pela ação, concederiam o benefício da prisão domiciliar ao “vulnerável” Bolsonaro.

Na esteira das depredações do 8 de Janeiro, ministros do STF entregaram-se à hipérbole, usando o termo “terrorismo”, que logo esqueceram. A encenação prosseguiu pela aplicação de penas exorbitantes aos manés, o que lhes rendeu, na paisagem da polarização política, tanto aplausos frenéticos quanto gritos de indignação. Daí que, na dosimetria das sentenças dos chefes golpistas, os juízes obrigaram-se a exibir severidade proporcional.

Agora, o acordão molda a valsa do recuo, que pode ou não abranger cláusulas ocultas. O Planalto engajou-se em negociação com a Casa Branca sobre as sanções tarifárias e não tarifárias impostas por Trump à economia nacional e a juízes de capa preta. Haverá entrelaçamento dessas conversas intergovernamentais com o acordão entre os Poderes?

Edson Fachin assumiu a presidência do STF falando contra a hipótese de corte dos supersalários e de alguma parcela dos vastos privilégios pecuniários da magistocracia, que qualificou como interferência na “autonomia da magistratura”. Seria uma mensagem cifrada sobre as condições para admissão da redução legislativa de penas?

A “harmonia entre os Poderes” evocada no artigo 2º da Constituição comparece, ritualmente, como senha de legitimação dos acordos de conciliação pelo alto tão comuns na nossa História. O acordão em curso nada tem a ver com a justiça ou o Estado de Direito, mas reflete a confluência de interesses políticos.

O Planalto e o Centrão querem, por motivos distintos, a desqualificação eleitoral de Bolsonaro. O bolsonarismo quer, como mínimo, sentenças menores para as lideranças golpistas. Todos podem ter sua parte no bolo. A mansão com vista para o lago é “pacificação” — justiça desigual sob a lei.


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