segunda-feira, 13 de outubro de 2025

A favela é soberana, por Preto Zezé

O Globo

É o maior laboratório de inovação humana do Brasil — porque ali se inventa sobrevivendo, se empreende

Durante décadas, falar de favela foi sinônimo de ausência: de Estado, de direitos, de reconhecimento. Agora, as favelas começam a falar por si mesmas — e o que dizem é outra história. A da favela soberana, que não pede licença: ocupa, inova e decide. Que não quer ser “integrada”, mas reconhecida como sujeito político e produtivo da cidade.

Recentemente, participei de um debate no Morro Dona Marta, ao lado do presidente da Câmara Municipal carioca, Carlo Caiado, durante o evento Extra Favelas. Ali ficou claro um marco histórico: o Rio de Janeiro é o único município do Brasil cujo Plano Diretor dedica um capítulo inteiro às favelas. Essa conquista muda a lógica do planejamento urbano.

Pela primeira vez, o poder público reconhece as favelas como parte estruturante da cidade — territórios que produzem economia, cultura, soluções e vida. O texto legal não as trata como áreas irregulares, mas como espaços legítimos de cidadania e criação coletiva.

Esse reconhecimento chega em boa hora. Enquanto o país ainda discute como incluir as favelas nos mapas, elas já criam seus próprios planos, plataformas e tecnologias. As inteligências que brotam do “Vale do Silício das favelas” provam que a inovação também nasce da falta. Jovens criam aplicativos, redes de informação, negócios e startups sociais que resolvem problemas reais: mobilidade, economia circular, segurança alimentar, cultura e educação.

A favela é o maior laboratório de inovação humana do Brasil — porque ali se inventa sobrevivendo, se empreende cooperando e se sonha junto.

Essa potência também se expressa na cultura. No próximo dia 4 de novembro, celebra-se o Dia da Favela, data que já é lei em diversas cidades e que, neste ano, se estenderá por uma Semana da Favela. O homenageado será o cantor Belo, a quem chamo de “Roberto Carlos das favelas” por sua capacidade de transformar emoção popular em música, traduzindo o amor, a dor e a beleza do povo preto e das favelas. Sua trajetória é símbolo do afeto e da dignidade que resistem onde o Estado ainda não chegou.

A favela soberana é mais que um conceito: é uma realidade em construção. É o território que planeja sua própria cidade, produz seus dados, comunica suas narrativas e movimenta sua economia. É onde o Brasil experimenta novas formas de fazer política, onde o voto nasce da vivência e não da promessa, onde a coletividade substitui o clientelismo e onde o futuro é projetado com base em solidariedade e autogestão.

A favela não é o problema — é a resposta. O futuro do país já acontece nas favelas, nas ladeiras, nas vielas e nas ideias de quem nunca desistiu de existir com dignidade. Reconhecer isso não é um gesto de inclusão. É um gesto de justiça.

 

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