quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Por que dá pra apostar que país reage à ‘mexicanização’, por Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Em 24 horas, três eventos sugerem que a reação ao crime organizado pode, enfim, sacolejar a letargia nacional

Três eventos, ocorridos em pouco mais de 24 horas, dão uma ideia do quanto a infiltração do crime organizado no Brasil inquieta agentes públicos e privados. A confluência dessas preocupações sugere que o fenômeno da “mexicanização” do país, cunhado há pelo menos uma década, pode, enfim, sacolejar a letargia nacional.

Na terça-feira, em São Paulo, um escritório de advocacia americano, com filial no Brasil, reuniu um grupo de grandes clientes no país com um alerta: está em curso a implantação, pelo Departamento de Justiça (DoJ) dos EUA, de uma interpretação inédita sobre organização terrorista com implicações para empresas com que mantenham relações lícitas ou ilícitas.

Subiu para 13 o número de organizações criminosas com este carimbo no continente. Por enquanto, estão restritas ao “eixo dos cartéis” (México, Venezuela e El Salvador). No pano de fundo do alargamento desta interpretação, porém, diz a advocacia americana, está o aumento da competitividade da economia dos EUA às custas de uma “reserva de mercado” na América Latina. A estatística ajuda escritórios de advocacia a vender contratos de compliance para empresas brasileiras, mas não impede que se verifique que, no alarde, há também um alerta.

A velocidade com a qual o DoJ avança para deixar essas organizações e sua rede de negócios ao alcance da justiça americana está relacionada ao novo foco nas “Organizações Criminosas Transnacionais” (TCOs) que substitui a atenção dada, até aqui, pelo Estado americano, à criminalização de suas empresas que praticam atos de suborno estrangeiro (FCPA). Ao contrário da FCPA, no entanto, a TCO, segundo este escritório americano, não tem critérios claros de enquadramento. Dependem, em grande parte, da “vontade do rei”.

Na quarta-feira, em São Paulo, a Febraban e o Coaf fizeram um dueto no Congresso promovido pelo sindicato dos bancos sobre prevenção à lavagem de dinheiro. O presidente da Febraban, Isaac Sidney, disse que o Estado “errou a mão” ao legalizar jogos online (a legalização aconteceu sob Michel Temer, o setor esbaldou-se nos quatro anos de Bolsonaro, e sob Lula III, começou a ser taxado). O presidente do Coaf, Ricardo Saadi, disse que o órgão está trabalhando com os bancos para fazer uma “gestão proativa” do controle sobre os recursos de organizações criminosas em circulação na economia.

A parceria pode avançar, ainda que não se estenda ao projeto de lei complementar que responsabiliza solidariamente as instituições financeiras e de pagamento pelo recolhimento dos tributos devidos de atividades ilícitas que usem seus serviços. O PL tem a oposição dos bancos, que atribuem unicamente ao Estado a responsabilidade de atuar contra quem sonega imposto.

Também nesta quarta, em Brasília, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, entregou à Casa Civil um projeto de lei que endurece penas para organizações criminosas. O texto estabelece prisão para seus réus de até 30 anos e torna inafiançável a atividade da “organização criminosa qualificada”, que é o controle de território ou atividade econômica por meio de violência ou ameaça, vide milícia. E ainda permite a criação de uma empresa fictícia, como, por exemplo, uma fintech, com o único objetivo de se infiltrar no mercado para atrair o interesse de organizações criminosas e, assim, facilitar seu cerco.

A PEC que cria as condições para o funcionamento do sistema único de segurança pública, também apresentada por Lewandowski, dormita em berço esplêndido no Congresso. A chance de esse projeto não ter o mesmo destino é porque fala a mesma língua da bancada da bala, o endurecimento penal. É impulsionado pelas operações da PF, Receita e MP que têm desbaratado a lavagem de dinheiro do crime organizado em fintechs, bets, leilões de gado, postos de gasolina, motéis e imobiliárias.

Como aterrissará no Congresso em pleno ano eleitoral, as chances de que seja aprovado são mínimas porque, entre outras razões, permitiria ao governo petista ir além do discurso eleitoral e sensibilizar os quase 20% da população brasileira que, segundo o Datafolha, convivem com facções criminosas e milícias no seu cotidiano. Como a oposição não se entende sobre seus cabeças de chapa em 2026, pretende, pelo menos, manter blindado seu curral eleitoral da segurança pública. Ainda assim, o PL permite que os parlamentares, com um texto em mãos, ajam rápido ante uma comoção nacional cometida pelo crime organizado.

Este PL começou a ser desenhado quando o ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo Mario Sarrubbo chegou à Secretaria de Segurança Pública do MJ no início do ano passado, mas sua apresentação coincide com a necessidade de dotar o país de uma legislação mais robusta para enfrentar eventuais alegações americanas de conivência do Brasil com organizações criminosas carimbadas de “terroristas”.

Avançou mais do que o PL anti-Magnitsky, cujo esboço chegou a transitar entre Febraban, STF e Palácio do Planalto. Este PL ambiciona blindar empresas e autoridades brasileiras da extraterritorialidade da jurisdição americana. De quebra, restringiria o mercado de compliance de escritórios como aquele que soltou o alerta para seus clientes na terça-feira. Este PL, porém, não avançará antes que esteja firmada a reaproximação entre os governos Lula e Trump, que confirmaram, para este domingo, seu primeiro encontro oficial.

O calendário eleitoral constrange o avanço da legislação contra o crime organizado e as contingências diplomáticas mantêm o Brasil vulnerável aos humores do despotismo internacional. A trava não impede que se reconheça o enfrentamento do crime organizado como o novo consenso que acabará por mover os vagões do atraso.

 

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