Valor Econômico
Em 24 horas, três eventos sugerem que a
reação ao crime organizado pode, enfim, sacolejar a letargia nacional
Três eventos, ocorridos em pouco mais de 24
horas, dão uma ideia do quanto a infiltração do crime organizado no Brasil
inquieta agentes públicos e privados. A confluência dessas preocupações sugere
que o fenômeno da “mexicanização” do país, cunhado há pelo menos uma década,
pode, enfim, sacolejar a letargia nacional.
Na terça-feira, em São Paulo, um escritório
de advocacia americano, com filial no Brasil, reuniu um grupo de grandes
clientes no país com um alerta: está em curso a implantação, pelo Departamento
de Justiça (DoJ) dos EUA, de uma interpretação inédita sobre organização
terrorista com implicações para empresas com que mantenham relações lícitas ou
ilícitas.
Subiu para 13 o número de organizações criminosas com este carimbo no continente. Por enquanto, estão restritas ao “eixo dos cartéis” (México, Venezuela e El Salvador). No pano de fundo do alargamento desta interpretação, porém, diz a advocacia americana, está o aumento da competitividade da economia dos EUA às custas de uma “reserva de mercado” na América Latina. A estatística ajuda escritórios de advocacia a vender contratos de compliance para empresas brasileiras, mas não impede que se verifique que, no alarde, há também um alerta.
A velocidade com a qual o DoJ avança para
deixar essas organizações e sua rede de negócios ao alcance da justiça
americana está relacionada ao novo foco nas “Organizações Criminosas
Transnacionais” (TCOs) que substitui a atenção dada, até aqui, pelo Estado
americano, à criminalização de suas empresas que praticam atos de suborno
estrangeiro (FCPA). Ao contrário da FCPA, no entanto, a TCO, segundo este
escritório americano, não tem critérios claros de enquadramento. Dependem, em
grande parte, da “vontade do rei”.
Na quarta-feira, em São Paulo, a Febraban e o
Coaf fizeram um dueto no Congresso promovido pelo sindicato dos bancos sobre
prevenção à lavagem de dinheiro. O presidente da Febraban, Isaac Sidney, disse
que o Estado “errou a mão” ao legalizar jogos online (a legalização aconteceu
sob Michel Temer, o setor esbaldou-se nos quatro anos de Bolsonaro, e sob Lula
III, começou a ser taxado). O presidente do Coaf, Ricardo Saadi, disse que o
órgão está trabalhando com os bancos para fazer uma “gestão proativa” do
controle sobre os recursos de organizações criminosas em circulação na
economia.
A parceria pode avançar, ainda que não se
estenda ao projeto de lei complementar que responsabiliza solidariamente as
instituições financeiras e de pagamento pelo recolhimento dos tributos devidos
de atividades ilícitas que usem seus serviços. O PL tem a oposição dos bancos,
que atribuem unicamente ao Estado a responsabilidade de atuar contra quem
sonega imposto.
Também nesta quarta, em Brasília, o ministro
da Justiça, Ricardo Lewandowski, entregou à Casa Civil um projeto de lei que
endurece penas para organizações criminosas. O texto estabelece prisão para
seus réus de até 30 anos e torna inafiançável a atividade da “organização
criminosa qualificada”, que é o controle de território ou atividade econômica
por meio de violência ou ameaça, vide milícia. E ainda permite a criação de uma
empresa fictícia, como, por exemplo, uma fintech, com o único objetivo de se
infiltrar no mercado para atrair o interesse de organizações criminosas e,
assim, facilitar seu cerco.
A PEC que cria as condições para o
funcionamento do sistema único de segurança pública, também apresentada por
Lewandowski, dormita em berço esplêndido no Congresso. A chance de esse projeto
não ter o mesmo destino é porque fala a mesma língua da bancada da bala, o
endurecimento penal. É impulsionado pelas operações da PF, Receita e MP que têm
desbaratado a lavagem de dinheiro do crime organizado em fintechs, bets,
leilões de gado, postos de gasolina, motéis e imobiliárias.
Como aterrissará no Congresso em pleno ano
eleitoral, as chances de que seja aprovado são mínimas porque, entre outras
razões, permitiria ao governo petista ir além do discurso eleitoral e
sensibilizar os quase 20% da população brasileira que, segundo o Datafolha,
convivem com facções criminosas e milícias no seu cotidiano. Como a oposição
não se entende sobre seus cabeças de chapa em 2026, pretende, pelo menos,
manter blindado seu curral eleitoral da segurança pública. Ainda assim, o PL permite
que os parlamentares, com um texto em mãos, ajam rápido ante uma comoção
nacional cometida pelo crime organizado.
Este PL começou a ser desenhado quando o
ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo Mario Sarrubbo chegou à Secretaria
de Segurança Pública do MJ no início do ano passado, mas sua apresentação
coincide com a necessidade de dotar o país de uma legislação mais robusta para
enfrentar eventuais alegações americanas de conivência do Brasil com
organizações criminosas carimbadas de “terroristas”.
Avançou mais do que o PL anti-Magnitsky, cujo
esboço chegou a transitar entre Febraban, STF e Palácio do Planalto. Este PL
ambiciona blindar empresas e autoridades brasileiras da extraterritorialidade
da jurisdição americana. De quebra, restringiria o mercado de compliance de
escritórios como aquele que soltou o alerta para seus clientes na terça-feira.
Este PL, porém, não avançará antes que esteja firmada a reaproximação entre os
governos Lula e Trump, que confirmaram, para este domingo, seu primeiro encontro
oficial.
O calendário eleitoral constrange o avanço da
legislação contra o crime organizado e as contingências diplomáticas mantêm o
Brasil vulnerável aos humores do despotismo internacional. A trava não impede
que se reconheça o enfrentamento do crime organizado como o novo consenso que
acabará por mover os vagões do atraso.
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