O Globo
A maneira como se processa, julga e determina
a prisão é, na verdade, um palco onde os holofotes estão nos vencedores
Há pouco mais de dois meses, falei dela numa
entrevista ao canal MyNews. Falei de modo geral: uma presa política em
condições precárias, em Três Corações, Minas Gerais. Fui criticado por me
interessar por alguém de direita. Houve quem dissesse que inventei o caso.
Hoje, serei um pouco mais específico.
Ela se chama Alexandra Aparecida da Silva, tem 43 anos, é ré primária, bons antecedentes. Usava uma tornozeleira eletrônica em sua pequena cidade de Fama, às margens do Lago de Furnas. De repente, foi levada para a prisão, onde sofre muito. Tem um nódulo na mama, esperando biópsia, um cisto no punho e sangramento retal. Não se trata de anistia, muito menos de dosagem de pena. Ainda não foi julgada.
É conhecida por Leca. Depois de presa pela
primeira vez em Brasília, seu
casamento foi para o espaço. Vivia precariamente, cuidando de nove cachorros.
Estava na capital apenas no dia 9 de janeiro de 2023. Seu ônibus quebrou e se
atrasou. Não participou de invasão aos prédios públicos. Mas suas redes sociais
eram claras: adepta de Bolsonaro, bandeiras do Brasil, ilusão de estar salvando
o país — essas coisas.
Quando deixou a prisão de Brasília e voltou
para sua pequena cidade, Leca precisava trabalhar. Tinha de se apresentar todas
as semanas à Justiça, na cidade vizinha Paraguaçu. Não havia muito como se
mexer: seu dinheiro não dava para frequentar o restaurante da Rita, no máximo
algumas idas à farmácia do Vantuil.
Leca teve a chance de se livrar do processo.
Era um acordo em que tinha de admitir sua culpa. Preferiu não assinar nada, era
mais verdadeiro. Nas suas saídas para o trabalho, alguém a fotografou.
Denunciada, foi para a cadeia. A pequena cidade cuida dos seus cachorros e se
cotiza para pagar o advogado.
Ninguém a vê como perigo à democracia. Pelo
contrário, alguns começam a duvidar se a democracia não é o perigo. Nem todos
sabem que o Brasil mudou muito com o fim da ditadura. Entramos em presídios,
implodimos o da Ilha Grande, visitamos inúmeros hospícios. Era um movimento de
esquerda, é verdade. Mas isso não se define por esquerda e direita. Transcende
essa divisão. O escritor Henry David Thoreau costumava dizer que, para conhecer
um país, é preciso visitar suas cadeias.
No meu entender, está em jogo em todo esse
trabalho punitivo a própria imagem da democracia. A maneira como se processa,
julga e determina a prisão é, na verdade, um palco onde os holofotes estão nos
vencedores. Representam algo de fato distinto ou são apenas a continuidade de
uma insensibilidade histórica?
Não acuso o Supremo, apenas tenho dito que
assumir a responsabilidade de milhares de processos significa também ter algum
controle sobre o dia a dia das prisões. O modesto pai de Leca foi visitá-la em
Três Corações. A penitenciária impediu sua entrada, dizendo que não se vestia
adequadamente. O homem saiu para comprar uma calça e camiseta, lançando mão de
suas economias. Quando voltou ao presídio, disseram:
— Acabou o horário de visitas.
O mundo está cheio dessas micromaldades. Não consigo ignorá-las. Por isso peço a Alexandre de Moraes que considere processar Leca em liberdade. Ela precisa cuidar da saúde, dos seus nove cachorros, e a pequena cidade de Fama respirará aliviada com sua volta.
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