O Estado de S. Paulo
A feitiçaria digital terá um peso gigantesco
e, sem regramentos, poderá conturbar todo o processo
As especulações sobre a corrida eleitoral de
2026 já comparecem aos jornais. São as interrogações de sempre (só mudam os
personagens). Quem será o candidato da direita? A família Bolsonaro vai apoiar
ou vai investir no racha? Do lado do governo, qual é a extensão dos acordos
partidários em prol da reeleição de Lula? Essa aliança terá forças de centro ou
vai se restringir ao campo da esquerda?
Por certo, essas perguntas importam e devem ser consideradas. Contudo, o fator que tem maior potencial de impacto não vem merecendo a atenção devida: a tecnologia das plataformas sociais. Como as ferramentas digitais atuarão? E a inteligência artificial (IA)? Teremos boas normas para regular a batalha nas redes? Teremos fiscalização eficiente ou o jogo sujo vai grassar? Ainda não há respostas, é claro, mas uma certeza já podemos assumir: a feitiçaria digital terá um peso gigantesco e, sem regramentos, poderá conturbar todo o processo. Poderá mesmo viciá-lo de modo irreversível.
Vejamos o que aconteceu nas eleições da Índia
no ano passado. Lá, os eleitores recebiam telefonemas de uma espécie de robô de
telemarketing que falava com a voz do candidato, num expediente que se mostrou
bastante eficaz. No Brasil vai ser igual? Se vierem vozes das nuvens, elas
dirão apenas amenidades? Ou vão distribuir calúnias? E as deepfakes?
Se a inércia prevalecer e não houver
prevenção, o cenário vai se complicar – o Brasil poderá se converter num
laboratório avançado para o que há de pior. Tempos atrás, circulou por aqui,
amplamente e muito à vontade, a falsa notícia de que o governo federal mandara
distribuir uma mamadeira cujo bico teria o formato do órgão sexual masculino.
Não, não foi piada de mau gosto. Aquilo foi um tsunami que varreu boa parte da
confiabilidade do debate eleitoral, com prejuízos cívicos incalculáveis.
Desta vez, o que vem pela frente poderá não
ter aparência de piada, mas de devastação, e não será surpresa. Desde 2016,
quando a Cambridge Analytica usou dados pessoais de clientes do Facebook para
assediar votantes no Reino Unido e nos Estados Unidos, sabemos que, na era
digital, a manipulação prima pela perversidade mais torpe. E hoje as
ferramentas são mais poderosas, mais temíveis.
Para complicar as coisas, as chamadas big
techs mudaram de atitude. Para pior. Antes, elas mantinham uma certa pose de
imparcialidade. Agora, chafurdam no partidarismo mais furibundo. Não que Apple,
Google, Meta ou Amazon vão sair por aí subindo em palanques. Elas não precisam.
Basta que façam vista grossa para o malfeito.
Há três precedentes que confirmam o risco.
Primeiro precedente: há dois anos, em maio de 2023, a seção brasileira do
Google deixou de lado a boa educação e disparou ataques frontais, em sua página
oficial, contra a aprovação do Projeto de Lei 2.630 (o PL das Fake News), que seria
votado por aqueles dias na Câmara Federal. De repente, uma empresa estrangeira
de comunicação passou a interferir abertamente numa decisão do parlamento
brasileiro, e levou a melhor – o PL 2.630 foi engavetado. É verdade que, no
final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), um relatório acusando o Google de
“abuso de poder econômico”, mas, passados mais de seis meses desde a agressão,
o mal já tinha sido perpetrado.
Segundo precedente: em janeiro deste ano,
após a eleição de Donald Trump, Mark Zuckerberg, dono da Meta – a proprietária
do Facebook, do Instagram e do WhatsApp –, vestiu uma camiseta preta, como a
dos fascistas da década de 1920, e gravou um pronunciamento prometendo combater
no mundo inteiro qualquer tentativa de regulação das plataformas (ele chama a
regulação de “censura”). Zuckerberg abandonou de vez o discurso de que o
Facebook seria uma cândida “praça pública”, sem preferências por um lado ou
outro, e assumiu o lado das bandeiras de Donald Trump. Falou com um agente
internacional do autoritarismo trumpista.
Terceiro precedente: em 2024, Elon Musk, o
ser humano mais rico do planeta, dono do X (ex-Twitter), virou cabo eleitoral
do obscurantismo. Durante a campanha presidencial nos Estados Unidos, subia no
palanque para sortear dinheiro entre eleitores do candidato republicano.
Depois, na festa de posse de Trump, foi ao púlpito e fez duas vezes a saudação
nazista, na frente das câmeras do mundo inteiro. Para ele, o gesto que
simboliza holocausto e totalitarismo é signo de celebração.
As tais big techs, que não escondem mais sua
preferência por líderes identificados com o trumpismo, são hoje o maior
aparelho de propaganda da extrema direita mundial. Não duvide por um segundo. A
depender delas, as feitiçarias virão e, se encontrarem espaço, promoverão danos
impensáveis. Os bajuladores digitais de Donald Trump vão tentar presenteá-lo
com avanços da extrema direita no Brasil, mesmo sabendo que estrangeiros não
podem se intrometer em eleições gerais de um país soberano.
As chances de que tentem fazer do Brasil um
laboratório da feitiçaria digital são grandes. Que a democracia brasileira siga
se cuidando. •

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