sexta-feira, 7 de novembro de 2025

A profecia de Richard Rorty, por Pablo Ortellado

O Globo

'Eleitorado decidirá que o sistema falhou e começará a procurar um homem forte para votar', afirmou filósofo em 1997

Um grande analista é aquele que observa um fenômeno em sua gênese e consegue extrair dele todas as consequências e também as consequências das consequências, antecipando desdobramentos causais que podem levar anos para se materializar. Farejar algo que emergirá plenamente em algumas décadas é um dom valioso e raro. Aqui mesmo nesta coluna, noutra ocasião, lembrei o historiador cultural Christopher Lasch. No livro “A cultura do narcisismo”, dos anos 1970, ele antecipou traços da cultura contemporânea que atribuímos hoje à influência das redes sociais.

Poucas profecias foram tão precisas nos detalhes como a feita numa conferência que o filósofo pragmatista Richard Rorty proferiu na Universidade Harvard em 1997 (“Achieving our country” — Harvard University Press, 1998). Nela, Rorty distinguiu duas correntes da esquerda: uma reformista e progressista, voltada à ação política e à melhora gradual das instituições; e outra cultural, mais crítica e teórica. Embora a esquerda cultural tenha contribuído para reduzir estigmas e ampliar o reconhecimento das minorias, a ausência de um horizonte reformista a empurrou para o pessimismo e para a paralisia política. Na conferência, Rorty defende que a esquerda recupere o patriotismo democrático e volte a unir intelectuais e trabalhadores em torno de reformas concretas que combatam a desigualdade e a injustiça social.

A certa altura, Rorty sugere que estamos “caminhando para um período semelhante ao da República de Weimar [na Alemanha do Entreguerras], em que movimentos populistas derrubarão governos constitucionais”. Ele nota o seguinte:

— Membros de sindicatos e os trabalhadores não organizados e não qualificados, mais cedo ou mais tarde, perceberão que seu governo não tenta impedir a queda dos salários ou a exportação dos empregos. Perceberão que os trabalhadores de colarinho branco dos subúrbios [ricos] — eles próprios desesperadamente com medo de ser demitidos — não se deixarão tributar para fornecer benefícios sociais a ninguém. Nesse momento, algo quebrará. O eleitorado decidirá que o sistema falhou e começará a procurar um homem forte para votar — alguém disposto a garantir que, uma vez eleito, os burocratas presunçosos, os advogados astutos, os operadores de ações supervalorizadas e os professores pós-modernos não estarão mais no comando.

E continua:

— Uma vez que tal líder forte assumir o cargo, ninguém poderá prever o que acontecerá. Em 1932, a maioria das previsões sobre o que aconteceria se Hindenburg nomeasse Hitler chanceler eram excessivamente otimistas. Algo que muito provavelmente acontecerá é os ganhos obtidos nos últimos 40 anos pelos americanos pretos e pardos e pelos homossexuais serem aniquilados. O desprezo jocoso pelas mulheres voltará à moda. As palavras “nigger” [termo ofensivo para se referir aos negros] e “kike” [termo ofensivo para se referir aos judeus] serão ouvidas novamente no local de trabalho. Todo o sadismo que a esquerda acadêmica tentou tornar inaceitável voltará com força total. Todo o ressentimento que os americanos com baixo nível de escolaridade sentem por seus modos serem ditados por graduados universitários encontrará uma válvula de escape.

Rorty conclui:

— Mas essa renovação do sadismo não alterará os efeitos do egoísmo. Pois, depois que meu homem forte imaginário assumir o poder, ele rapidamente fará as pazes com os super-ricos internacionais, assim como Hitler fez com os industriais alemães. Invocará a gloriosa memória da Guerra do Golfo para provocar aventuras militares que gerarão prosperidade no curto prazo. Será um desastre para o país e para o mundo. As pessoas se perguntarão por que houve tão pouca resistência à sua inevitável ascensão. Onde estava a esquerda americana, perguntarão? Por que apenas direitistas como Buchanan falaram aos trabalhadores sobre as consequências da globalização? Por que a esquerda não conseguiu canalizar a raiva crescente dos recém-despossuídos?

Trinta anos depois, as palavras de Rorty, enunciadas como exercício especulativo, parecem um diagnóstico preciso do nosso tempo. O avanço do populismo autoritário, resultado tanto do ressentimento da classe trabalhadora quanto do isolamento social e cultural do progressismo, parece cumprir, ponto a ponto, o roteiro que Rorty delineou. Retomar sua advertência hoje é um convite à autocrítica política da esquerda — uma reflexão sobre como a desconexão entre as identidades culturais e as condições materiais dos trabalhadores contribuíram para a ascensão do populismo autoritário.

 

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